INFÂNCIA FELIZ

INFÂNCIA FELIZ

Nos anos 50, às margens do Ribeirão dos Meninos, entre o Córrego Taióca e o Sítio Tangará, era mais ou menos assim:

A criançada e os adolescentes se divertiam muito, aprendiam a nadar e mergulhar tanto nas lagoas das diversas olarias (nas divisas dos municípios de Santo André e São Bernardo do Campo-SP) quanto no Ribeirão dos Meninos. E depois iam jogar futebol nos campinhos improvisados e também nos campos oficiais (EC 7 de Setembro, Vila Vivaldi FC, Bom Pastor FC, Vila Floresta FC, EC Vila Baeta Neves, etc etc). Descendo a Av. Winston Churchill (São Bernardo do Campo), rumo à Avenida Atlântica, sentido Vila Valparaíso e Jardim Bela Vista - Santo André. Do lado direito, antes de chegar no Córrego do Meninos, que faz a divisa dos municípios, havia o Tanque das Mulatas e outras lagoas menores, originárias das escavações para retirar argila. Era o paraíso aquático das crianças e jovens moradores da vilas Vivaldi, Thereza e Rudge Ramos (lado SBC) e do Jardim Bom Pastor, Vila Valparaíso, Vila Floresta e Scarpelli (lado Santo André). Na época, eu escrevi para um familiar, que residia no interior do Estado: “Diga para os tios mandarem alguma ajuda urgente, estamos passando muitas dificuldades, às vezes apenas uma refeição ao dia, à base de feijão com farinha de mandioca, chuchu e verduras da nossa horta. Vivemos próximo da várzea do Ribeirão dos Meninos, uma baixada úmida e fria, com muita neblina do anoitecer até às 8 horas da manhã. Aqui tem muitas nascentes, lagoas piscosas de águas translúcidas, abundante mata nativa, inúmeras espécies de pássaros. E é claro, a meninada com o "pé no chão", apenas alguns possuem calçados, sandálias de lona e corda (Alpargatas Roda”. Minha carta nunca foi respondida, pois nem mesmo dinheiro para comprar selos eu dispunha. Mas em que pese as muitas dificuldades, guardo muitas e boas lembranças. Aos 10 anos (em 1957) eu já tinha experiência com enxurradas e enchentes e 2 cachorros sob meus cuidadosos: a cadela Lula, parideira extraordinária, suas ninhadas eram entre 9 e 12 filhotes; o Rex, um vira-latas típico: baixinho, troncudo, muito valente e feroz). O terceiro seria o "Pablito", que foi resgatado durante um temporal, quando a enchente já submergia os jardins e terraços das casas dos primeiros quarteirões da Av. Bom Pastor (várzea do Ribeirão dos Meninos, caudaloso apenas nas épocas chuvosas). Eu consegui ludibriar a guarda das irmãs mais velhas e - sorrateiramente - fui explorar as várzeas, sob intenso aguaceiro. A enxurrada era muito forte, eu me esgueirava pelas guias submersas e pelos muros das casas, em direção ao epicentro do alagamento: a junção das avenidas Atlântica e Winston Churchill e o início da Avenida Bom Pastor. Eletrizado pelo fragor da tempestade e das corredeiras, eu me aventurava com a água na altura dos joelhos. Foi quando eu vi o cãozinho mirrado, trêmulo, sobre o pilar de um muro, quase na esquina com a Travessa Santa Rosa (esta já estava totalmente alagada). Instintivamente tirei meu agasalho e com ele envolvi o cãozinho. Retornei pela avenida Bom Pastor, cujo leve aclive no sentido da padaria da Rua José D'Angelo livrava da enchente o restante do bairro. O cão tremia e eu me dei conta que estava encharcado, gelado, tiritando sob o temporal. Corri de volta para minha casa (na Travessa Um, próximo à Caixa D'Agua do bairro, vigiada pelo zeloso “Seo” Juvenal e do Grupo Escolar – na Praça São Marcos). Abriguei o cãozinho franzino (era só pele e osso) no terraço, cobrindo-o com panos velhos, improvisando uma casinha com uma caixa de papelão. Daí em diante o alimentei, dei-lhe o nome de "Pablito", porque ele me lembrava um esquálido personagem mexicano de revistas em quadrinhos. Ele nunca adquiriu peso, era muito frágil, as pessoas diziam que ele era doente, que poderia transmitir doenças, que precisava ser sacrificado. Eu não admitia isso. Cuidava dele com todo o carinho, durante sua breve existência. Na mesma época, à exemplo de outras crianças no bairro, me tornei engraxate. A primeira Caixinha de Engraxate foi montada com um caixote e pregos doados pelo japonês dono da Quitanda. A orientação e as ferramentas (serrote, martelo) foram dadas pelo “Seo Ângelo”, dono do Depósito de Materiais de Construção. O “Ponto dos Engraxates” era na calçada da Padaria Bom Pastor, na esquina da Rua José D’Angelo com a Av. Bom Pastor. Alguns meses depois consegui ser admitido como Aprendiz de Balconista, na Mercearia do “Seo” Antonio (na Av. Bom Pastor, esquina com Rua Cotia), um português ranzinza, mas de bom coração, com um linguajar lusitano impecável. Aprendi muito com ele. Depois foi a fase como Aprendiz de Serralheiro, de Auxiliar de Feirante e de Cobrador de Ônibus. Também Ajudante nas Oficinas de Funilaria e Pintura, Mecânica e Auto Elétrico. Nas horas vagas, muita leitura. Por sorte, aprendi a ler antes dos 6 anos, eu era o caçula de 8 irmãos e acompanhava com muito interesse os irmãos e irmãs fazendo seus deveres escolares em casa, todos os dias, após as aulas do Curso Primário. Aos 7 anos, quando entrei no Curso Primário, já havia lido várias vezes a coleção “História das Civilizações” e vários compêndios de História do Brasil e Geografia. (...)

AOS MAIS JOVENS: O Córrego Taioca faz divisa entre Santo André (Jd. Estela) e São Bernardo do Campo (Baeta Neves) desaguando no Ribeirão dos Meninos, na altura da atual Av. Pereira Barreto. O Sítio Tangará, entre as décadas de 1920 e 1930, pertencia ao milionário inglês Charles Murray e era utilizada como "casa de campo", tinha também um bem cuidado Campo de Golfe. A família de Charles Murray mantinha ainda uma propriedade na Av. Portugal, a Chácara Mimosa (atual sede do Clube Primeiro de Maio). Estas residências eram ocupadas apenas em finais de semana, pois na época toda a região do atual Grande ABC paulista era ocupada por grandes propriedades rurais, muito utilizada como “estância climática” pelas famílias de posses, que dominavam a economia e a política no progressista estado de São Paulo. Desapropriada em 1964 para a implantação de um parque público, o Sítio Tangará acabou sendo ocupado pela Fundação Santo André, Faculdade de Medicina do ABC, Instituto Médico Legal e Associação dos Funcionários Públicos. (...)

(“Contos de Outrora”, autoria: Juares de Marcos Jardim / Santo André Sacy - São Paulo-SP - Direitos reservados - Lei Federal 9610/98)

Juares de Marcos Jardim
Enviado por Juares de Marcos Jardim em 26/01/2020
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