Volta o filho pródigo à casa do pai
Volta o filho pródigo à casa do pai. Chega da longa viagem com nova cabeça, diz ao pai que virou homem de verdade e que desistiu daquelas idéias malucas que norteavam sua cabeça quando saiu de casa.
- Fazer uma revolução, eu? Nossa! Onde já se viu?
- Agora que está formado, vai fazer o que?
- Agora que me formei vou trabalhar. Por o pé no chão, assim como o senhor sempre me pediu.
- Entendo...
Enquanto propagava para o pai a sua nova mentalidade, recolhia os discos de vinil antigos e substituía-os por novos, agora CD’s. Na antiga coleção figuravam obras como o Novo Aeon do Raul Seixas, A Divina Comédia Ou Ando Meio Desligado dos Mutantes, Construção, Sinal Fechado e Calabar do Chico Buarque, Alucinação do Belchior, Falso Brilhante da Elis, a Opinião de Nara, somadas às obras de Pablo Milanes, Gilberto Gil e Caetano, entre tantas outras que faziam o desespero de seu pai.
Agora, sem uma gota de nostalgia e pudor, dispensava todos os discos numa caixa de papelão com o intuito de entregá-los a algum colecionador ou ao primeiro catador de lixos que passasse na rua.
- Vou jogar esse dos Mutantes fora; além de arranhado não me diz mais nada.
O pai que até ali se manteve em silêncio reagiu com desespero:
- Não. Não jogue esse dos Mutantes fora!
- Ué! Não era o senhor mesmo que reclamava do barulho das guitarras elétricas?
- Sim. Realmente elas faziam barulho.
- Faziam ou faz?
- Faziam. Já não fazem mais. Depois de suportar você repetindo umas trocentas vezes, me acostumei à barulheira.
- Já que é assim, pode guardar para o senhor.
Continuava a substituir com frieza aquele amontoado de discos, depois seria a vez dos livros sofrerem com a mudança de concepção que se instalara no rapaz. Enquanto ia reformando o quarto, ia expondo seu novo modo de pensar, muito diferente do antigo jovem metido a Che Guevara que habitava aquela casa, muito diferente daquele leitor de Maiakovski e Ferreira Gullar que declamava poemas para todos ouvirem, muito diferente daquele menino que se vestiu de verde e amarelo exigindo em meio ao povo “Diretas Já”.
Agora o filho não era mais nem a sombra daquele moço metido a revolucionário, a não ser no seu jeito inquieto, meio elétrico de ser. Como o pai bem observara, o filho era assim: mal sustinha uma idéia na cabeça e já queria concretizá-la. E era isso que estava fazendo, alterando a realidade do seu quarto para melhor se adaptar ao seu novo modo de pensar. Se antes era o mundo, seu problema agora era o quarto.
- É. Acho que vou jogar esse livro fora também.
- Qual?
- Dentro da Noite Veloz...
-O do Gullar?
- Sim.
- Não, espere aí; deixe-me vê-lo.
- Esse aí além de empoeirado, também já me é ultrapassado.
- Pois vou ficar com ele.
- Ora. Agora vi. Não era o senhor mesmo que me dizia que não queria livro de comunista em casa?
- Sim. Mas naquela época comunista botava medo. Hoje não bota mais.
- É. Nisso o senhor tem razão.
E tocava a reforma no quarto enquanto falava:
- Hoje sou um cara realista, sabe pai... Esse negócio de se envolver com partido num dá em nada. Se desse ao menos dinheiro...
O pai escutava com aparente complacência tudo o que o filho ia falando.
- O senhor sempre me alertava: olha a realidade, a coisa não está fácil, o mercado é competitivo. E eu dava de ombros, não aceitando a realidade tal como ela é.
- E o que você dizia na época?
- Eu dizia que aceitávamos com apatia os maiores absurdos.
- E o que mais?
- Que não poderíamos mais encarar a realidade como uma coisa feita, mas como uma coisa a ser construída. Essa asneira toda.
- E o que mais?
- Que nós seres humanos não podíamos ficar se digladiando como se fossemos animais na luta pela sobrevivência. Que por sermos humanos tínhamos a capacidade de organizar a sociedade de modo que ninguém precisasse morrer de fome.
- E o que mais?
- Que deveríamos lutar por um mundo novo. Um mundo bom que assegurasse a todos o ensejo de trabalho, que desse futuro à mocidade e segurança à velhice. Àquelas coisas que ouvi quando assisti O Grande Ditador, do Chaplin.
- E o que mais?
- Ah, pai. Já chega, né!
- Não. Espere um momento. E quando eu alertava você, dizendo que o mercado de trabalho era muito competitivo?
- Eu reagia, denunciava esse mercado competitivo. Dizia que isso era tornar declarada e explícita uma guerra. Como se fosse natural.
- E que tipo de guerra você denunciava?
- A do capitalismo, a que proclama: um contra todos e todos contra um.
- E o que eu dizia?
- O senhor dizia que o mundo não valia a casa que tínhamos.
- E o que mais?
- Dizia que eu era um vagabundo.
- E o que mais?
- Ah. Chega, né pai!
Dito isto, abre-se um ligeiro silêncio... O pai ainda diz:
- Mas em algumas coisas você tinha razão...
- Sim, é verdade. Pensando bem, em algumas coisas eu tinha lá meus pingos de razão. Mas não podemos perder nosso tempo com sonhos juvenis e ver a vida passar sem fazer nada por nós mesmos.
- Entendo...
- E além do mais, logo constituirei família, terei uma esposa a zelar, filhos que cuidar, responsabilidades que assumir. Quero ser um pai como foi o senhor.
- Entendo...
- Hoje sou muito grato pelo pai que o senhor me foi. Mesmo a contragosto, me pagou uma universidade cara no exterior, me deixou distante dessa vida louca aqui no Brasil, ao mesmo tempo em que me distanciou do movimento estudantil. Você estava certo: a distância me faria abrir novos horizontes e me fazer mudar de idéia. Valeu a pena ter ficado esses seis anos longe daqui.
- Entendo...
A noite já caia lá fora e o filho continuava sua interminável reforma: livros nessa lixeira, outros nessa caixa, discos aqui, discos acolá...
- Esse aqui, deixe me ver: sem dúvida vou jogar no lixo.
- Qual o do Chico?
- Sim o do Chico. Além de arranhadíssimo, também não me diz mais nada.
- Mas Construção é uma obra-prima!
- Mas ele não era apenas um “fanho” para o senhor?
- Fanho? Eu nunca disse isso.
- Disse sim.
- Não disse não. Disse que ele era perigoso.
- Perigoso?
- Sim. Na ditadura ele era perigoso.
- Mas já estávamos no final do Governo Figueiredo quando ouvi esse disco.
- E daí?
- E daí que já estávamos no final da ditadura.
- E daí?
- E daí que o Chico não era mais perigoso.
- Era sim rapazinho. Não é a toa que seu tio teve que prestar depoimento na policia por escutar uma das músicas dele em alto som.
- Burrice a dele. Foi escutar logo Cálice, que estava censurada. Mas não foi só por isso não.
- Mas seja o que for, vou ficar com esse e ponto final.
- Sim. Pode ficar com ele. Agora não venha me dizer que o senhor vai querer os livros do Marcuse, do Marx e do Neruda?
- Vou querer sim senhor.
- O senhor está brincando?
- Não estou não.
- Como não? Não era o senhor mesmo que me proibia de lê-los?
- É que nesse tempo em que você esteve fora de casa, andei lendo esses seus livros, pra matar a saudade, sabe?
- E daí, pai?
- Acabei me afeiçoando com algumas coisinhas...
O pai coçou a cabeça, meio encabulado. O filho o olhou como a um estranho. Ficaram ambos se encarando por um bom tempo como dois estranhos. O pai continuou meio ressabiado:
- Filho, sabe aquele dia em que você foi embora?
- É claro.
- Você se lembra do que tinha deixando em casa antes de sair?
- Além dos livros e dos discos que o senhor não me permitiu levar... Não lembro.
- Não lembra?
- Não. O que foi?
- Você deixou uma carta de despedida. Lembra?
- Ah! Lembrei...
- Pois é. Nela você dizia que quando voltasse não desistiria de lutar pelo que acredita, por maior que fosse a distância.
O filho encabulado:
- Ah pai, não se pode levar um jovem tão a sério.
- Você dizia que nunca se espelharia em mim para nada. Que eu era um carrasco, um porco capitalista, lembra?
- Mas hoje não concordo com o que dizia. E hoje sou como o senhor sempre me quis: sou sua imagem e semelhança. Veja! Não se orgulha?
- Ai que tristeza!
- Como? Que tristeza pai?
- Hoje, olhando você, posso ver o quanto fui mula.
- O senhor está me chamando de mula?
- Também.
- Mas pai: sou como você!
- Era. Não é mais.
- Como assim?
- Por que aquele menino que saiu de casa a seis anos atrás, cheio de sonhos infantis e bobinhos, deixou uma carta de despedida que mudou a cabeça desse marmanjão aqui. Não sou mais o mesmo velho de antigamente, já não sou tão “realista” assim.
- O que o senhor está dizendo?
- O que estou dizendo? Exijamos o impossível: façamos a revolução!
- Você está maluco?
O pai sem mais esperar, catou os livros e os discos que estavam a vista, tocou tudo numa mochila e sem lenço e sem documento caiu no mundo afora. O filho ficou em casa, trabalhou, prosperou, se reproduziu e ficou com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar.
Já o pai, esse nunca mais voltou.
***