A dona Helena Morreu: o povo quer justiça! (JN e Novela das oito)
Parte 1: a rotina da família brasileira
A família de Dona Amália Ribeiro, da classe média carioca, todas as noites se reúne diante da tevê, mais propriamente no horário da janta, para assistir ao Jornal Nacional e a novela das oito. Há anos eles mantém esse comportamento, que já parece uma tradição incorporada na rotina da família brasileira.
Dona Amália nunca teve motivo para se decepcionar com essas duas programações, cada uma com suas funções específicas: o jornal apresentando a realidade em noticiários e a novela apresentando a ficção em capítulos; de modo que não lhe parecia errada tal constatação. Em verdade, ela nunca sentiu necessidade de distinguir e conceituar de forma metódica o que é “realidade” e o que é “ficção”. Para ela o importante é que na vida não faltasse dinheiro na sua conta e que na novela não lhe ocorresse de constatar a morte da personagem principal no último capitulo.
Seu Augusto Ribeiro, marido de Dona Amália, liga a tevê com a intenção de assistir ao jornal:
- Ô Amália! – o marido grita da sala – Já começou o Jornal Nacional. A janta já está pronta?
- Já. Só falta terminar de esquentar o feijão.
Esquentado o feijão, todos - Dona Amália, seu Augusto, os dois meninos e a mais moça – sentam-se no sofá para assistir ao resto do jornal. Seu augusto se encontrava roendo o osso do frango quando ouviu Fátima Bernardes anunciar, com expressão compenetrada no rosto, o novo aumento registrado na Taxa Selic, a ligeira queda na Dow Jones e a queda sofrida pela Bovespa. E enquanto levava o arroz à boca, procurava decifrar aquele amontoado de gráficos indecifráveis que aparecem quando se trata de noticias relacionadas ao mercado financeiro. Sem compreender bem e ainda sem se esforçar para entender o que estava acontecendo, comenta:
- Nossa Senhora! A Bovespa caiu de novo.
Os filhos e a esposa, concentrados na janta, apenas escutavam o comentário de Seu Augusto, e com isso guardavam no íntimo de si mesmos uma secreta admiração pelo chefe da família. Afinal de contas, é admirável ver alguém que entenda todo aquele tipo de informação a ponto de comentá-la assim, com tanta naturalidade.
Agora Willian Bonner é quem anunciava. Dizia, com a face de quem está muito puto, mas que não pode deixar transparecer que está muito puto, que a inflação aumentava mais uma vez, que o Dólar também subia e que o Real caia pela vigésima quinta vez seguida. Subitamente, como num passe de mágica, Willian Bonner muda de tom e de expressão e anuncia, com um ligeiro sorriso no rosto, a vitória de Felipe Massa na fórmula 1. Essa todos entenderam, inclusive os meninos e o próprio pai interromperam a janta para se concentrar na entrevista feita ao piloto. Depois todos eles receberam com naturalidade, Fátima Bernardes anunciar a morte de mais 38 soldados iraquianos, 9 soldados americanos e 15 civis nas proximidades de Bagdá. Nessa hora, a moça é a única que manifesta sua indignação:
- Esse feijão hoje está muito salgado mãe!
- Deixe de conversa. Você também reclama demais.
- Eu reclamo demais? A senhora é que não sabe mais fazer comida.
- Se está reclamando trate de fazer.
O mais novo se manifesta:
- Preferia a comida da empregada.
Seu Augusto, irritado, pede silêncio, alegando que na hora do jornal não é hora de zoada, é hora de silêncio. Todos se calam e logo se esquecem da pequena discussão, até porque no jornal se anunciavam os preparativos para a próxima Copa do Mundo que se realizará na África do Sul. Willian Bonner comentava tudo isso com um maroto sorriso no rosto. Mas logo se compenetrava novamente, com expressão grave, para falar do conflito que a policia teve com os traficantes na favela do Muquiço. Resultando na morte de 6 traficantes e um policial militar. O menino mais velho pergunta:
- Quantas pessoas morreram mesmo em pai?
- Espera aí, só um momento: acho que foram oito no total.
- Não pai. Estou falando do Iraque.
- Ah, no Iraque num lembro mais não.
- Ouvi dizer que morrem mais pessoas no Brasil do que na Guerra do Iraque, é verdade pai? Por que isso acontece em pai?
- Você quer saber porque isso acontece? – o pai fica pensativo por um momento – Depois eu te falo. Agora faça silêncio. Já te falei que hora do jornal é hora de silêncio.
O filho fica em silêncio. Meio constrangido, murchou pensativo, tentando entender o porque daquela realidade. Mas logo se esqueceu do constrangimento e da curiosidade quando Fátima Bernardes anunciou com um sorriso de alegria contida no rosto que o Brasil será a sede da Copa do Mundo de 2014. Nesse momento lhe saltaram à imaginação imagens de sua presença nos campos de futebol: “Ainda vou jogar no Real Madri, na seleção brasileira e vou ganhar dinheiro que nem o Ronaldinho. Ou melhor: mais que o Ronaldinho”. Quando o menino interrompeu sua imaginação, notou que já haviam passado duas matérias e o intervalo comercial. A mãe e seu irmão mais novo levavam os pratos à cozinha quando saia uma matéria em homenagem a Roberto Marinho, falecido há alguns anos. No auge da matéria Fátima Bernardes chora algumas lágrimas discretas. Bonner, cumprindo seu papel de marido e profissional, a acolhe, tomando a sua fala. Dona Amália também se emociona discretamente no seu sofá.
Dessa forma encerram o jornal, lembrando aos telespectadores que é dia do último capitulo da novela das oito. No encerramento falaram entre outras coisas, que as Organizações Globo estão a serviço da cidadania, da ética e da liberdade de imprensa e que a novela que seria exibida em seguida, é um exemplo desse serviço. Estampando longo sorriso no rosto, os dois se despedem da família brasileira com um tradicional:
- Boa noite.
A expectativa agora é maior, como se fosse final de copa do mundo. Dona Amália sabe que todas as vizinhas estarão com a tevê sintonizada na novela – é claro! – afinal, esse é o último capitulo e ninguém seria louco de perder. Até o marido que vez em quando diz que novela é coisa de mulher, está lá, com os olhos vidrados diante da tevê, na ânsia secreta de que a novela comece logo. Para a filha mais moça a expectativa é tamanha que ela nem sai do sofá para levar o prato, no que pede, aliás, exige que seu irmão mais novo o leve para a cozinha. O menino sai tinindo para levar o prato e volta como foguete para não perder sequer a vinheta de abertura.
E finalmente: começa a novela das oito.
Que acontecerá a Helena, a personagem principal da novela? Será que o doutor Miguel vai pedir ela em casamento, ele que é tão bonzinho, homem de tão bom caráter? Ou será que ela vai se deixar seduzir pelo o Armando, o garanhão que já deitou com praticamente todo o elenco feminino da novela? Mas não pode, ela deve ficar é com o Miguel, pois este pode se comprometer em fidelidade, já o outro, o Armando, só daria chifres na coitada. Não seria justo. Até porque o Miguel, desde o primeiro capitulo, demonstrou mais carinho e mais dedicação a ela do que o Armando. Embora o Armando seja irresistível com aquele jeito durão dele é, por outro lado, cachorro e cafajeste, não merecendo, por sua vez, o amor de Helena. Por isso deve ficar com a Laura que dá certinho com ele, por ser galinha. O problema é o ciúme doentio que ela tem pelo Armando, é capaz de qualquer loucura por ele. Essa Laura tem índole ruim.
Mas dona Helena é mulher resolvida, séria, íntegra: não vai trocar um homem de caráter como o Miguel por um cachorro como o Armando. Num vai mesmo! Mas e a Carol, a filha dela, será que ela vai se entender de novo com o Eduardo? Ele é tão bonzinho! Merece o amor dela. O problema é a Paula, aquela falsa, invejosa. Vai querer enganar a ele, dizendo que a Carol o traiu com o Tarcísio, mas é mentira. Ela faz tudo pelo dinheiro dele. O Eduardo vai descobrir que é tudo uma farsa, uma mentira tramada pela Paula. Vocês vão ver: pode esperar.
Parte 2: a revolta popular:
No desenrolar da novela, descobre-se realmente que Eduardo terminaria ao lado de Carol, após desmascarar a mentira de Paula. E que Tarcísio acabaria morrendo num acidente de carro e que Paula pararia num hospício com a paranóia de ser casada com Eduardo. Laura, por sua vez, fica com o Armando, mas com ciúmes desse, acaba matando, para desespero de todos, nada mais e nada menos do que Helena, a personagem principal da novela.
Por essa ninguém esperava: ninguém podia aceitar. No sofá, ninguém acredita no que está vendo. A moça e os pequenos choram a morte da personagem num choro incontido de quem perdeu um ente querido da família.
- É um absurdo! – se ergue indignada do sofá Dona Amália, que até ali se manteve paralisada, como se estivesse canalizando todo o ódio no seu coração de mãe e cidadã.
- Isso é um absurdo! Como pode uma coisa dessas? É uma injustiça! A dona Helena não podia morrer dessa forma, logo no último capitulo.
Seu augusto, como pai de família e homem macho que julgava ser, não choraria por maior que fosse sua tristeza em ver uma personagem de novela – e logo a Dona Helena – morrer naquelas circunstâncias, de forma tão inesperada quanto absurda. De modo que este se manifesta:
- Mulher, te senta aí. Fique quieta. É só uma novela.
- O que Augusto? Só uma novela? Você disse: só uma novela?
- Mas ora, é ou não é?
- É claro que é Augusto. Isso é óbvio. Mas eu não vou me sentar nesse sofá de jeito nenhum, ora mais.
- Te senta, se acalma, e relaxe mulher. Eu sei que é difícil, mas as coisas são assim mesmo. Vá buscar água pra sua mãe, ela precisa relaxar.
- Eu não preciso relaxar não. E tem mais: não me diga que as coisas são assim mesmo.
- O que você está dizendo?
- Estou dizendo que as coisas nunca foram assim mesmo: nunca uma personagem como a dona Helena morreu em último capitulo de novela. E logo ela, tão íntegra, mãe de família como eu.
- Isso é verdade pai.
- Eu sei, mas o diretor quis assim, então será assim. É só uma novela.
- Diretor coisa nenhuma. Eu não aceito, não posso aceitar e não vou aceitar. Se eu não mudar o final dessa novela, eu não me chamo Maria Amália Rodrigues Ferreira.
Dona Amália imediatamente trata de pegar sua agenda telefônica, e desanda a ligar para suas vizinhas, que assim como ela, compartilhavam da mesma indignação e desespero. Uma delas ainda comenta:
- E o doutor Miguel, vai ficar sozinho? Logo ele que queria tanto se casar com a Helena. Esse diretor está é ficando maluco. Também não aceito Dona Amália.
- Pois é Maria. Os meninos estão todos chorando aqui em casa. A menina mais moça, já está que nem se agüenta mais de tanto chorar.
- E a minha Amália? A bichinha já tem aqueles problemas cardíacos. Agora está quase pra ter um enfarto. E eu estou aqui desesperada, sem saber o que fazer.
- Mas eu sei o que fazer.
- Sabe?
- Sei. Amanhã vamos marchar juntas.
- Como assim, do que você está falando?
- Vamos marchar amanhã, juntas, até a cidade de Jacarepaguá, com destino ao Projac.
- Aonde os artistas gravam a novela, é isso?
- Exatamente.
- Pois estou contigo Amália.
- Pois bem, se está comigo, trate de ligar então para as outras vizinhas.
- Pode deixar. Além de ligar para as vizinhas, vou aproveitar e ligar para as minhas irmãs lá de São Paulo e de Minas. E os parentes do meu marido, que moram lá em Sergipe também.
Dona Amália desliga o telefone, ao redor os filhos parecem todos entusiasmados com a idéia.
- É isso aí mamãe. Posso chamar pela Internet minhas amigas?
- Pode não, deve. Trate de chamar todos aqueles que se encontram na sua agenda de telefone. E vocês meninos, tratem de ajudar a sua irmã.
- Sim senhora.
No dia seguinte, a manifestação formada por alguns moradores dos bairros vizinhos, mulheres, crianças e inclusive homens, ocupavam as ruas do Rio de Janeiro. Tudo sob o controle e a enérgica liderança de Dona Amália. E aos poucos iam ganhando as ruas, tomando as praças, se alastrando pela cidade. Somara-se a eles, moradores do Estácio, do Catumbi, de Olaria Ramos, Bonsucesso, Rua Marques de Sapucaí, bairro da Lapa, e mais tarde Niterói, Leblon, Ipanema e Copacabana. De outros estados, principalmente da região sudeste e centro-oeste chegavam ônibus a todo o momento, desembarcando na Central do Brasil. Mineiro, paulista, brasiliense, potiguar, gaúcho, mato-grossense aos montes desembarcavam. E não faltaram entre esses, baianos e pernambucanos que ocupassem as ruas.
Enquanto tentavam controlar a euforia popular, a Policia Militar, as Forças Armadas e a própria imprensa, tanto da Rede Globo como de outras emissoras, assistiam a todo esse burburinho com grande espanto e admiração. À medida que os manifestantes iam se aproximando de Jacarepaguá, mais aumentava o número de revoltosos.
A revolta assumiu uma proporção jamais ocorrida na história do Brasil, nem na revolta da Vacina, nem na da Chibata, nem na Marcha dos 100 Mil contra a ditadura, se via um movimento tão extraordinário, tão imponente, tão indignado quanto aquele que se via, a tomar as ruas num turbilhão de ódio coletivo contra o último capitulo da novela das oito, contra a morte de dona Helena.
A mobilização se desencadeou de forma tão eficiente, tão espontânea, tão intensa, que logo dona Amália viu o controle e a liderança fugirem de suas mãos. Não havia mais o que esclarecer, o povo não precisava mais de um líder estabelecendo prioridades, rumos a serem tomados. O povo estava consciente de sua ação, sabia muito bem o que queria. Como chegar e porque chegar ao Projac. Estavam determinados a lutar contra essa injustiça, esse desrespeito, esse atentado à família brasileira. Não podiam ficar diante da tevê de braços cruzados, esperando o que os produtores da novela queriam. E por isso ergueram coletivamente a bunda do sofá para exigirem justiça: exigir a mudança imediata do último capitulo da novela das oito, exigir a ressurreição de Helena e a concretização de seu casamento com o doutor Miguel. É muita injustiça que não se concretize o casamento mais esperado do ano. Uma ofensa desavergonhada contra todo o povo brasileiro: que trabalha, paga seus impostos, e quando chega em casa já cansado, não quer escutar uma noticia dessas. Já não bastasse a realidade ser tão dura, agora a novela, que sempre acabou feliz, ter esse desfecho tão trágico. Não poderiam aceitar.
E lá estavam erguendo cartazes e faixas com os dizeres mais indignados que a história do país já registrou: “Dona Helena morreu: o povo quer justiça!”, “Nem os militares foram tão sórdidos”, “Eu tenho família: mereço respeito”, “O povo não é saco de pancada: quer um final feliz”, “Laura é galinha: dona Helena é mãe de família”, “Seu Miguel quer Helena viva!”, “Morremos, mas ressuscitamos dona Helena”, “Sem Dona Helena o povo não vê tevê”.
E em uníssono dispararam a bradar diversas vezes em coro:
- O povo unido, jamais será vencido!
Disseram que os brados do povo brasileiro no Rio de Janeiro eram tão retumbantes, que quem estivesse às margens do Ipiranga, em São Paulo, seria capaz de ouvi-los nitidamente, como se estivesse lá, no meio da manifestação.
Ao chegar em Jacarepaguá, a poucos quilômetros do Projac, o povo teve um embate com as tropas de choque do exército. Mas muitos deles estavam dispostos a dar o sangue e a vida pela causa. Alguns morreram em combate com a policia, outros foram presos, a maioria, entre eles crianças, saíram feridos. Dona Amália, grande heroína, foi uma das vitimas, saiu da manifestação com algumas contusões pelo corpo. Mas como dizia o ditado: a justiça tarda, mas não falha. E foi o que aconteceu. O povo unido provou que quando unido, jamais seria vencido por ninguém, nem mesmo pela poderosa Rede Globo.
No dia seguinte, o Jornal Nacional, depois de anunciar o aumento da inflação, do desemprego e do arrocho salarial, informou por meio do sorriso alegre e simpático de Willian Bonner e Fátima Bernardes a esperada alteração no capitulo da novela. Bonner informa que o doutor Miguel ia se casar e viver feliz para sempre com Dona Helena, assim como ele e Fátima. Os dois encerram o jornal com um caloroso:
- Boa noite.
No sofá de Dona Amália todos assistem novamente ao último capitulo da novela. “O jornal não mente, falou a verdade” - concluiu seu Augusto. Dona Amália suspira, com uma satisfação de trabalho cumprido. E todos na família iam dormir àquela noite com a mais doce sensação de que na vida tudo terá seu final feliz.