A melhor hora do dia

Um dia chuvoso como hoje, a tv ligada num clássico faroeste, aquele que o marido está assistindo pela décima vez. A internet lenta e eu tentando trabalhar, mas a penumbra do fim do dia, no início da noite fria me traz uma certa melancolia que remete aos tempos de infância.

Era nesta hora que eu e minhas irmãs, já deveríamos ter tomado o banho, fechado as janelas da casa, para não entrar pernilongo e, sentadas no sofá, esperávamos o “paicamãe”. Não poderíamos dissociar as figuras do pai com a mãe, chegando sempre juntos em casa depois de um dia de trabalho.

A primeira coisa que meu pai fazia era tirar os sapatos quando entrava pela porta e, sentado na cadeira do papai, alguém tinha que tirar as suas meias, confesso que na época eu não gostava muito dessa tarefa, mas o hábito tornou-se tão mecânico que, se não me falha a memória, ele nem precisava me chamar.

Na cozinha começavam os barulhos de panelas e o cheirinho de alho, porque mãe em casa é sinal de comida boa. A hora das refeições era um momento de reunião, ninguém podia comer fora da mesa ou assistir à televisão. Comer juntos era um ritual sagrado, como sagrada era nossa família. Nesta hora também, sempre rolava uma delação da irmã do meio, que por ciúmes ou por zelo queria sempre o melhor para nós, reportando, nem tão inocentemente, as nossas travessuras do dia. Depois da bronca o castigo era negociado. Lembro-me de umas punições brandas e outras mais severas, pois se “Fez coisa errada, deve pagar”.

Coisa errada para os adultos, porque criança faz coisa sem saber que é errada. Faz porque tem vontade, curiosidade ou só pra ver no que vai dar. Peraltice na infância é uma espécie de aula de experimentações, ciência pura!

Água e terra vira lama. Numa proporção bem legal dá pra fazer uma bolinha consistente. Quanto tempo uma bolinha de lama aguenta ficar grudada se for arremessada no teto? Teto da garagem, assim, ninguém perceberia. E eu fiquei ali sentada esperando ela cair por uns minutos e nada, na manhã seguinte ela lá, firme desafiando a lei de Newton. Dois dias depois e ela lá, firminha, tive outro insight. E se eu jogar uma bolinha de lama maior? Será que ficará mais tempo? Resolvi chamar meus novos amigos chilenos, Chino e Lela, pra a experiência da lama. Seriam muitas bolinhas e de tamanhos variados. Não poderia ser na garagem das nossas casas, iriam descobrir. Aceitaram na hora, fomos na escolinha que ficava ao lado de casa. Lá tinha uma garagem enorme que não era utilizada. Não demorou muito, a decoração estava pronta, centenas delas, firmes e marrons. Desafiando a lei da gravidade. Nem minha irmã sabia dessa arte, então, não haveria delação naquela noite.

Alguma coisa aconteceu e a rotina foi um pouco diferente, antes de entrar em casa e tirar os sapatos eu já ouvi meu nome si-la-ba-do e em um tom bem mais alto que o normal, não foi preciso esperar a hora da delação. Alguém tinha visto, o castigo já estava estipulado, no dia seguinte, passamos horas para lavar aquela garagem de lama. Quanto tempo durariam as bolinhas grudadas no teto? Nunca mais testamos, mas na época durou menos de 24 horas.

Hoje tenho certeza que esta era a melhor hora do dia, a espera certeira, ele chegaria em casa, eu tiraria suas meias e nossa família se sentaria à mesa para o próximo jantar, foram muitos dias sem travessuras depois da lama, mas logo começariam novos experimentos científicos.

Dessas horas, ficaram as memórias, as saudades e a certeza que um dia nos reencontraremos em outro patamar.

Sandra Batista 18/01/2020