Crime sem castigo
“E aí, você se recuperou do acidente?” Ela tinha vindo servir a comida e eu perguntara por perguntar, para ser gentil. Selma devia ter uns 25 anos, mas já tinha filha de 8. Nem feia, nem bonita, cabelos crespos amarrados em coque por trás, chamava a atenção pelo jeito educado, comedido, recatado com o qual se dirigia aos fregueses. Deviam ter lhe ensinado em alguma destas escolas de gastronomia, ou então, tinha sido o patrão mesmo que comentara: “Freguês não quer ser importunado com detalhes da sua vida pessoal.”
Eu soubera por alto do acidente, mas ela agora contava os detalhes. Vinham, ela e a filha, juntas na moto, quando, no topo da ladeira, notou que estava sem freio. A moto embalando velocidade, a filha agarrada na garupa, a velocidade aumentando, ela apavorada, mas, o que fazer? Só quem segurava a moto era o vento, mas vento é ar e moto é ferro e o que é que pode o ar contra o ferro ainda mais sob a ação da gravidade?
Selma não chegou a ter estes pensamentos porque a gravidade não passava pela cabeça dela, mas pensou em Deus que passa por todo lugar. E lá ia a moto, embalando velocidade, o peso do ferro, a gravidade, o vento e o pensamento em Deus. A filha agarrada na garupa, a força do abraço deixando claro o medo e o pavor. A esperança, ou seja, a realidade com a qual Selma esperava contar, era conseguir chegar lá embaixo, lá onde a gravidade acaba e se torna negativa. É que depois de descida costuma vir subida, e a esperança era chegarem vivas, ela e a filha, pegar a subida e ir parando aos poucos.
O que ela não contava era com a curva que antecedia a subida. E foi a curva, e não a gravidade negativa ou o vento, que as segurou. Infelizmente a curva não teve a delicadeza do vento ou da gravidade negativa. Se a gravidade tem a mão da física ou da metafísica, dependendo das convicções políticas, se o vento tem mão de brisa, carícias de aragem, a curva tinha garras de pedra. As unhas cortantes do barranco lanharam pele, rosto, pernas e mãos, mas das garras da morte escaparam as duas. Foram parar no hospital, ficaram lá um tempo, mas fora fraturas, hematomas e arranhões, não houve nada.
“Mas você não notou que estava sem freio? Não surgiu uma oportunidade para testar o freio antes da ladeira? Além disso, a moto tem dois freios, um na roda da frente e outro na roda de trás. Pifaram os dois? Ao mesmo tempo?” perguntei, depois que Selma terminou o relato.
“É que eu moro no topo da ladeira e a moto fica estacionada na calçada.” E Selma complementou: “Depois do acidente levei a moto no mecânico e ele confirmou: os cabos dos freios, tanto o da frente como o de trás, foram cortados. E foi alicate, dos grandes.”
“Cortados?” perguntei num eco. “Como é possível?”
“A minha moto fica na rua. Alguém passou e cortou os cabos. Só não morremos, eu e a minha filha, porque Deus não quis. Não era chegada a hora.”
Selma voltou para a cozinha encerrando a conversa. Fiquei eu e os meus pensamentos. Não dava para acreditar que aquilo fosse obra do acaso, que algum desconhecido tivesse saído por aí cortando cabo de moto. Dinheiro não podia explicar o acontecido, porque ali ninguém tinha nada. Só podia ser crime passional, possivelmente feito por algum ex-marido ou ex-namorado. Podia até mesmo ser o pai da criança, o que explicava porque Selma teimava em não querer ver. Ela não queria mexer em ferida aberta, não queria envolver a criança em mais uma briga. Talvez ela até se sentisse culpada, sentisse tudo aquilo como castigo. Talvez o criminoso, o verdadeiro, tivesse planejado tudo contando com esta brecha. Era por esta brecha que ele se esgueirava e conseguia escapar. Ficava lá o crime sem castigo.