Capão do Mel

“As notas das cornetas vibravam em cima desse tumulto, imperceptíveis, inúteis!”

Euclides da Cunha

Sempre tivera irresistível atração pelo trágico, pelos que tomam nas mãos as rédeas do próprio destino, porém, era um trágico na essência, pois a vida não lhe reservara grandes dissabores faltando assim o “botão detonador” até que, em 1964, a queda de Goulart forneceu-lhe o pretexto. Não que fosse homem de grandes preocupações políticas, mas a comoção nacional que o fato provocara; as citações constantes a Vargas e a lembrança de sua saída histórica que a simples menção do nome Goulart avivava, enfim, uma série de fatores encadeados levaram-no identificar no golpe institucional a tão sonhada chance de revolver o seu Aqueronte. Decisão tomada rabiscou um bilhete no qual, em letras trêmulas, anunciava: morro pra não ver meu país à deriva!

Na manhã de outono, após uma noite insone, saiu. Ao ver-se refletido no espelho sentiu enorme pena de si mesmo; no umbral da porta tropeçou.

Chegando à cocheira arreou a égua baia sobre a qual escanchou-se e, passo lento, seguiu pela estrada de pedras soltas. Tomou o caminho da Serra do Caracol, serra de beleza estonteante onde em noites de lua cheia reticentes lobos-guarás, já no ocaso da espécie, ainda insistem em acasalar; reproduzir-se.

Ao deixar para trás Andradas, passou por garis que, tiritando de frio, varriam as ruas e, sem nada dizer, entreolhavam-se com olhares semelhantes. Ele ainda era o que passa.

Próximo a região conhecida como Capão do Mel, deparou-se com homens de passo triste e cumprimentou-os vagamente, Desviou a montaria para um relvado no qual, imponente, destacava-se uma paineira. Formigas-correição, ao pressenti-lo, abandonaram a trilha e espalharam-se por entre tufos de palmeirinhas e guanxumas. Na distância, o canto triste de um aracuã; no céu, nada que ouse detê-lo.

Dispara. Da vazante deriva o veio, lerdo filete de sangue espraia-se contido aqui e ali por minúsculos obstáculos. Refeito do susto causado pelo estrondo ensurdecedor o animal estremece levemente e volta pastar tranquilo.

Nota: texto publicado há muitos anos na 1ª edição do livro “Sobre a Terra”

Luizinho Trocate
Enviado por Luizinho Trocate em 21/01/2020
Reeditado em 21/01/2020
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