Atropelei as Goiabas

Atualmente estou de pernas pro ar.
Por conta da sequela de uma doença crônica, com a qual convivo há vinte anos tive que, finalmente, tomar a difícil decisão de deixar que operassem meu tornozelo esquerdo.
Claro, acreditando ser para meu próprio bem estar futuro.
Ah! Esse futuro que já me pareceu tão longe e hoje tão ali. Antigamente ele não me amedrontava. Hoje parece-me um bicho-papão papudo pronto a me engolir enquanto fico aqui contando os dias monótonos e esperando o calendário terminar.
Esquadrinho o teto, palmo a palmo, rezando para que ele não caia sobre mim e nem me sufoque.
Venço o dia a dia na mesma posição, mantendo a esperança, já que ela é a última que morre, de que essa foi a melhor decisão a ser tomada, depois de muita pesquisa, lágrimas, raiva e risos.
Não sou do tipo fatalista nem dramática.
Um médico me provocou ira, um outro decepção, um terceiro expectativa e ainda teve aquele que me divertiu.
Neste período de pesquisa "científica" para eleger o melhor e mais "qualificado" (no meu entender), fui perdendo o medo e as amarras até o recente dia em que, completamente, me entreguei, cheia de ânsia e desejo, sem questionar a escolha, como uma apaixonada cega e obstinada, no ímpeto de acreditar que tudo ia mudar.
Só que agora está tudo muito chato, cansativo e dolorido.
Quero ir embora para Nárnia. Lá onde a magia é corriqueira e poderia transitar facilmente entre dois mundos.
Minha vida anda resumida entre três cômodos do pequeno apartamento onde moro: quarto, sala, banheiro.
É cansativo viver de papo pro ar e me locomover com muletas me entristece a medida que percebo que, para algumas pessoas, isso é para sempre.
Sair esporadicamente de casa se tornou um acontecimento. Tomar banho, no meu caso, parece um operação de guerra.
Me consola o fato de saber que é temporário.
Porém me questiono, frequentemente, se esta foi a escolha certa.
Ele é alto, magro, levemente grisalho, atencioso e com senso de humor. Tem umas mãos lindas e firmes, de dedos longos e macios e ainda por cima me fez promessas, um verdadeiro príncipe de fazer inveja a Harry ou William, o homem que toda mulher gostaria de encontrar na vida, mas tremendamente volúvel. Acho que promete dias melhores a todas que o procuram.
Se alguém quiser o telefone dele eu passo. Não sou do tipo possessiva.
Por conta desta situação em que ele me deixou, vivi aventuras inusitadas, dignas, realmente, de contos das mil e uma noites.
Andei de ambulância, de maca com rodinhas e de maca carregada por dois enfermeiros altos e fortes. Subi escadas de cadeirinha e também, o que é melhor, ganhei colo daquele vizinho jovem e forte que malha na academia. Recebi café na cama, almoço caprichado na bandeja, visitas preocupadas e carinhosas, amigas tagarelas e a companhia constante e silenciosa da minha pinscher.
Confeccionei muitos fuxicos sem destino traçado e squares de crochê com objetivo certo. Assisti filmes meia boca na tv a cabo e declinei de todos os convites para eventos sociais e culturais ultimamente, quando minha única real e trabalhosa preocupação é montar uma diligência para poder sair de casa e retornar ao médico.
Nessas ocasiões aproveito tudo o que tenho direito e me canso de uma vez só. Volto para casa exausta, como se tivesse corrido uma maratona. Mas me aventuro na farmácia, no direto do campo, na agropecuária, na clínica veterinária (onde está o ortopedista/veterinário da minha vida, aquele que me alertou para a possibilidade de se fazer uma cirurgia no meu tornozelo e indireitá-lo, não sem consequências, e que se recusou a me operar apesar de eu ter implorado para ele fazê-lo e ter prometido que não contaria para ninguém e que este seria o segredo entre nós dois. Adoraria compartilhar um segredo assim bem cabeludo com alguém).
Lanço moda com minha longa bota preta num pé só, sentindo-me uma apresentadora de programa infantil da década de oitenta. Com meu motorista e fotógrafo particular já experimentei visitar dois dos grandes supermercados da região que disponibilizam carrinho elétrico para deficientes, um mais moderno que o outro. Sou motorista a trinta anos e dou conta do recado no meu automóvel automático sem muitas barbeiragens, mas aquela coisa pequena com os controles na mão, foi um desafio divertido. E sim, a gente vai envelhecendo e aprendendo a se divertir com pouco.
Minha segunda incursão com carrinho elétrico mostrou-me que a gente nunca está pronta o suficiente, nunca sabe o bastante sobre qualquer coisa. Logo eu, que tomo o maior cuidado com minha condução pelas ruas, respeito fielmente as leis de trânsito e os outros motoristas, fui demonstrar minha imperícia na seção de hortifrutis. Sentindo-me segura, a verdadeira rainha da cocada preta, cometi uma manobra mal calculada, perdi o controle e atropelei um caixote de belas e caras goiabas.
Um dos funcionários que estavam por perto correu para ajudar e juntar as goiabas esparramadas pelo chão, com cara de poucos amigos, o outro fez o que qualquer um faria e caiu na gargalhada e eu, sem outra alternativa, me desculpei com o primeiro e ri com o segundo. Rimos muito e meu marido não entendeu patavinas quando cheguei ao caixa, onde ele me esperava, chorando de tanto gargalhar.
Agora, continuo em casa, escrevendo longos textos iguais a este, na madrugada insone. E quando a inspiração se vai, flerto com meu teto branco fazendo conta de cabeça para calcular quanto tempo falta para isso acabar.



 
Roseli Schutel
Enviado por Roseli Schutel em 19/01/2020
Reeditado em 29/05/2020
Código do texto: T6845385
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