O aprendiz

Hoje, domingo, caminhava em uma das praças de União, recentemente restaurada pela municipalidade, e vi uma cena inusitada. Um senhor de bigode robusto, óculos de aros grossos, semblante de militar aposentado, olhar hesitante, subiu num banco, endireitou os óculos, mirou bicicleta e montou sobre o selim desse veículo de duas rodas. Em seguida, trôpego, todo inabilidoso, iniciou trajeto, um longo trajeto de visíveis centímetros, interrompido por um paralelepípedo praceiro. Não foi uma queda feia, dessas que provocam sangria e que é preciso chamar o SAMU para os procedimentos medicamentosos; também não foi bonita, dessas fabricadas por bêbados e que geralmente nos tiram um sorriso incontrolável, inexplicável, de muito mau gosto: afinal por que rir de um bêbado que cai? Será que o suposto militar aposentado saberia a resposta?

Aproximei-me desse suposto militar aposentado e descobri que não era militar, tampouco aposentado, apesar de ter dado entrada na aposentadoria, mas por idade, fato que ainda não se fez ocasião, tendo em vista que, até o momento, segundo me disse, a papelada está presa na fila do INSS. Sua ocupação é outra. Não é lidar com armas, conter protestos, perseguir infratores das diversas leis do Estado; é um simples vendedor de pastéis que, agora, na fase adulta, apesar dos agravos da idade, resolveu aprender a andar de bicicleta. Justamente agora, época em que o mundo anda de avião, cozinha em fornos micro-ondas, comunica-se por WhatsApp; logo agora, que a Ciência pretende matar a sede de todo o mundo, pois tem se debruçado em pesquisas avançadas para transformar a água do mar em água potável; logo agora que o mundo se prepara para a Terceira Guerra Mundial, esse vendedor de pastéis resolveu retroagir e aprender a andar de bicicleta.

Familiares, vizinhos e alguns profissionais médicos criticam a ação. Mas o vendedor de pastéis em via de aposentadoria defende-se das críticas, alegando nunca ser tarde para aprender, e ainda mais a andar de bicicleta. Desde a primeira vez que viu uma bicicleta, amou-a profundamente e de paixão. Um certo dia, em hora incerta, seus olhos, à época saudáveis, avistaram em uma estrada de barro um corpo em movimento sobre duas rodas e em relativa velocidade. Deteve-se à cena e achou-se capaz de, algum dia, reproduzi-la. Assim surgiu seu sonho, que só agora lhe está sendo permitido realizar. Sempre quis pilotar uma bicicleta, mas foi contido pela pressa do mundo, que, ainda na infância e depois na adolescência, o impediu de aprender a domar uma bicicleta. Agora, prestes a se aposentar, com filhos criados, a última parcela da geladeira quitada, o Mercado lhe permitiu espaço para adquirir sua sonhada bicicleta, e como nem o governo nem as Universidades oferecem cursos práticos na área, resolveu praticar nas praças da cidade.

É verdade que os cachorros, os mendigos, os casais de namorados em potencial que habitam essas praças, no início, reclamaram o espaço, mas, ante causa tão nobre, resolveram ceder e compartilhar as praças da cidade com esse vendedor de pastéis em via de aposentadoria e desconhecedor da arte de pedalar. Atualmente os cachorros, mendigos, casais praceiros até torcem para que o vendedor de pastéis consiga pedalar mais do que alguns centímetros com sua bicicleta. Torcem para que, quanto antes e sem a ajuda do Governo e das Universidades, esse vendedor de pastéis saia da condição de pedestre e adentre à de ciclista; que pedale por aí, em meio a cidade entupida de carros, triciclos, motos, drones, montado em sua bicicleta de duas rodas, e chegue inteiro ao lugar de destino, sem que necessite chamar um UBER.

É indispensável que chegue inteiro ao local de destino, que não seja atropelado no trajeto, pois já bastam os atropelamentos dos pedestres, o conflito EUA x Irã, o aumento do desemprego, a inflação, as filas do INSS, para os noticiários se ocuparem. Não precisam de mais material, como o atropelamento de um ciclista em processo de aprendizagem, para aumentarem a audiência e venderem mais papel. Esse vendedor de pastéis não precisa ter a identidade revelada, a vida noticiada nacionalmente em veículo quadrado, sob a voz lamuriosa de apresentador de telejornal, comunicando com aparente pesar mais um inscrito em obituário. Precisa, isso sim, saber onde fica o freio da bicicleta; aprender a desviar-se de carros que vez por outra invadem a contramão; espaço para praticar a difícil arte de equilibra-se sobre duas rodas. Antes que lhe venha a queda derradeira e lhe tire a condição de aprendiz.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 19/01/2020
Reeditado em 20/01/2020
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