O SEM-NOÇÃO
O sem-noção confunde roteiros, bulas e rotinas. É um tipo de autista, sem esse diagnóstico formal. Erra em coisas triviais e em outras, complexas, deita e rola. Arrasa. O sem-noção vive surpreendendo com reações adversas ao entorno, recebe entulhada de vaias quando esperava aplausos de pé. E vice-versa. Por conta da sua peculiar capacidade de dissimulação, consegue sobreviver entre feras famintas e, pasme, acaba ocupando seu lugar ao sol. É resiliente nos desafios, vai fundo no que acredita e luta até o fim pra chegar aonde quer. Tenacidade e certa capacidade tática se sobrepõem às suas derrapadas de conduta, aos vendavais que tem que conviver a cada novo passo. Pode-se dizer que é herói, diante das infinitas guerras em que se embrenhou e saiu ileso, mesmo ferido nunca desistiu de lutar. O sem-noção tem tesouros não explorados e capacidades pouco assumidas que podemos chamar de reserva técnica, que faz aflorar quando a situação exige. É fruto torto, rebarbado, surrado. É criatura estranha, bizarra até, que destoa do restante da cria. Vai cumprindo o que a vida lhe impõe com certa subserviência, com certa humildade, com certa voz domada. A velhice só o torna mais sem-noção, desarmando seus trunfos sem pedir licença. Um dia vai morrer e seu legado muito tempo depois será ovacionado ou detonado de vez, quando forem capazes de entender as nuances que estavam encravadas em cada fio do seu respirar.