SOBRE FACTOS E ÓPTICAS
SOBRE FACTOS E ÓPTICAS
“... A ortografia é um fenómeno da cultura -- e portanto um fenómeno espiritual. O Estado nada têm com o espírito -- O Estado não tem direito a compelir-me, em matéria estranha ao Estado, a escrever numa ortografia que repugno, como não tem direito a impor-me uma religião que não aceito...”
Fernando Pessoa - Ortografia - Pessoa Inédito
Por vezes minha ortografia causa espécie a quem me lê. É assim desde a faculdade, ainda no final do século passado... Eu comecei a reparar na ortografia dos textos de Saramago e de Pessoa a ponto de não conseguir mais escrever as palavras sem a sensação de que algo lhes faltava. E faltava mesmo! Percebi que palavras como FACTO perdiam seu viés latinizado se desprovidas do "C" anteposto ao "T". Do mesmo modo que um súbdito não pareceria submisso o bastante sem o "B"... Coisas da minha cabeça? Talvez... O facto é que, por escrever sobretudo poesia, essa excentricidade ora passava por licença poética; ora por estilismo puro e simples.
Lembro ainda nos tempos da Faculdade de Arquitetura que, apesar de ter tomado o cuidado de escrever conforme a NGB a minha monografia de fim de curso, em plena banca de apresentação do trabalho uma das componentes da mesa, lembrando outros textos meus, atirou-me de chofre a pergunta: -- "Por que você escreve assim?" -- eu me fiz de desentendido: -- "Assim como? -- tive ganas de bostejar hermetismos poéticos a torto e a direito, mas me saí com a polidez que a ocasião e a boa educação obrigavam: -- "Solto esses arcaísmos nas palavras para causar estranheza ao leitor e lhe obter, d'estarte, sua atenção."... Ela -- era uma doutora em Urbanismo -- fingiu que entendeu e eu fingi que era entendido.
Após esse incidente houve ainda muitos outros, mais ou menos conflituosos, de sorte que um bom rastro de incompreensão essa ortografia incomum fosse deixando ao longo de minha trajectória. Hoje, sinceramente, vejo minha posição como um acto de lusofonia poética, ou melhor, um gesto de aproximação de meu peculiar português sulamericano em direcção ao vernáculo espalhado pelos quatro cantos do mundo, não somente o europeu. Não escrevo como escrevo por ser um filólogo passadista ou um lusitanista perdido nos trópicos, muito pelo contrário! A ortografia de que me valho é algo que faz parte de mim; de minha experiência poética. É forçoso confessar que me fiz poeta escrevendo muito mais do que lendo poesia. Eu desconheço autores imprescindíveis contemporâneos ao passo que lia poetas mortos à exaustão... Havia sempre soluções ortográficas que não podiam ser apenas explicadas pela época, ao contrário, eram do autor.
Mas havia a questão normativa da língua escrita, meio de comunicação que deveria evitar facilitar a transmissão de ideias, não dificultá-la. Com efeito, n'um país onde a leitura é tão precarizada normalmente a mera possibilidade de impor variações ortográficas ao texto é muitas vezes denunciada como desnorteadora. Tenho consciência de que muitos que me leem torcem o nariz diante dos apóstrofos aqui e ali ou mesmo em face d'um HUMIDADE com H... É um risco que corro.
Sem embargo, àqueles que se interessam em saber porque alguém conscientemente procura escrever ao largo da norma culta brasileira, eu saco do embornal o famigerado Acordo Ortográfico de 1990 firmado entre as nações lusófonas e faço o questionador ver que muitas palavras podem hoje, legalmente, serem escritas à europeia ou não. É facultativo escrever fato ou facto. Em que pesem muitas críticas ao acordo, ampliar a possibilidade e mesmo a experimentação ortográfica é um valor de que me valho. Justo por isso não chego aos exageros de muitos autores que são arcaizantes assumidos, seja pela paixão que nutrem pelo grego e o latim; seja porque vem na ortografia do português brasileiro pré-1945 um valor em si. Eu respeito essa opção, mas ressalto que não é a minha.
Isto posto, espero que meu eventual leitor se sinta esclarecido e usufrua de meus textos sem mais senões.
É isso.
Belo Horizonte - 14 01 2020