Finalmente livre!

Fim de tarde de um domingo abafado, nuvens pesadas prenunciavam um iminente temporal e um mendigo saído da praça atravessava a rua deserta com passos lentos e arrastados seguido por um cachorro que parou vigilante no meio da via até que seu dono estivesse do outro lado em segurança. Depois foi juntar-se a ele fielmente como sempre fazia.

Era Xerife, um vira lata de médio porte todo preto com uma mancha branca no peito que lembrava uma estrela, daí o nome. Fora achado num terreno baldio quando o mendigo procurava latinhas e ouviu ganidos abafados vindo detrás de um monte de entulhos. Xerife estava dentro de um saco plástico amarrado quase morrendo sufocado quando ele rasgando o saco salvo-lhe a vida. nunca mais se desgrudaram.

O mendigo era um homem de estatura mediana com barba e cabelos compridos e mal tratados levemente grisalhos, aparentava uns cinquenta e poucos anos mas tinha muito menos.

Perdeu o pai quando ainda era bebê de colo desde então sua mãe trazia um olhar triste e perdido até morrer quando tinha 8 anos.

Depois da morte da mãe os irmãos foram separados e ele cresceu num orfanato sem ter mais noticias dos mesmos, até se ver nas ruas sem casa e sem família.

Os ventos sacudiam violentamente os galhos das árvores e a forte chuva podia ser ouvida nos telhados e vistas nas luzes dos postes e o mendigo numa calçada larga e coberta encostava na parede o saco de estopa que trazia todo seu patrimônio: meia dúzia de latinhas, um papelão dobrado, que servia como cama, e um capote sujo que servia como travesseiro e para proteger do frio da madrugada.

Ultimamente estava muito debilitado, as condições de vida e a falta de higiene pessoal facilitou a entrada de várias doenças infecciosas que se agravaram rapidamente com inflamação total da garganta e feridas nas pernas que o impediam de se locomover rapidamente sobrando o cabo de vassoura como apoio.

Depois de muito sacrifício e se apoiando no cabo ele conseguiu sentar no piso, abriu o saco pegou o papelão e o capote e viu no fundo um embrulho de papel alumínio que havia ganho de uma senhora caridosa no banco da praça enquanto sua netinha afagava a testa de Xerife horas atrás.

Era um apetitoso lanche de carne mas como ele não podia comer devido o inchaço na garganta deu todo a Xerife que devorou com apetite e depois foi se aninhar nos braços de seu dono como sempre.

A praça com suas crianças correndo e gritando fez lembrar seus irmãos e uma mulher que consolava um garotinho que caíra lembrava sua triste mãe.

Então internamente questionava DEUS:

Por que levou minha mãe?...Por que tirou meus irmãos?...Por que me deu destino tão cruel? Porque fome?...Por que frio? Por que solidão? Por que?...Por que?...Por que?...Uma lágrima rolou no seu rosto sujo.

Em seguida a doença cumpriu seu papel e ele sucumbiu abraçado a Xerife.

Logo se viu brincando com seus irmãos no mesmo quintal da infância mas já não tinha o corpo sujo e dolorido, voltava a ter 8 anos e quando viu sua mãe já não era mais aquela mulher de olhos tristes, radiavam felicidade e dizia: Não chore, mamãe tá aqui!.

A medida que ia clareando se revelava na calçada a cena do mendigo morto deitado em posição fetal abraçado ao cão, trazia rastro de lágrima no rosto e um sorriso nos lábios,...finalmente LIVRE!!!

As últimas gotas caiam das folhas das árvores e o sol nascia dourando a barra do horizonte!!!

andaluz
Enviado por andaluz em 14/01/2020
Reeditado em 14/01/2020
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