AQUILO QUE ERA MULHER

AQUILO QUE ERA MULHER

Mané era malandro. Bom de conversa, utilizava vocabulário rebuscado. Não media as consequências de seus atos. Bom de briga, quando bebia ficava incontrolável. Após diversas transgressões em estado completamente alterado por exagerada ingestão de álcool, resolveu parar de beber. Faziam seis meses que conseguia se segurar com refrigerantes, suco de laranja e outras amenidades. Sua aparência mudara, era um cara bonito, conversador, envolvente. Mas não se livrara do espírito de malandro, aquela mania de obter vantagem e ganhos com pouco esforço. Sob a aparência de homem correto que adotara, a sua essência continuava a mesma: folgado, malandro, com discurso cheio de palavras rebuscadas que impressionava as pessoas.

Maria Lúcia era o oposto. Toda certinha, trabalhava há anos em uma boa empresa, era respeitada e respeitosa, caprichosa, honesta, excelente cozinheira. Enfim, uma mulher do bem, que tinha um nível de vida simples, mas estável. Seu horário de trabalho permitia dar uma boa assistência ao lar. Negra, bonita, inteligente, seu ponto fraco era a solidão, Sempre que abria a porta da boa casa herdada dos pais, o vazio do local a incomodava. Andava de um cômodo para outro como se buscasse deparar com um visitante, preferencialmente um bom homem simpático, bonito e trabalhador. Além de todos esses atributos, Maria Lúcia dançava bem e era frequentadora assídua das rodas de samba da comunidade que morava. Sempre sozinha, com uma indefectível garrafa de água na mão.

Maria Lúcia demorou a sair do serviço e foi abordada por um homem, que gentilmente lhe informou tratar-se de um assalto, aconselhou-a a não resistir e entregar sua carteira, telefone celular, joias, etc. Por sua maneira de falar e a voz mansa, Maria Lúcia intuiu que o camarada era um pseudo marginal e havia espaço para uma negociação. Argumentou que era trabalhadora, morava em favela, se ofereceu para ajudá-lo a mudar de vida. Suas palavras fizeram efeito e, aparentemente, o sujeito desabou, contou que estava desempregado há meses, procurava emprego todos os dias sem conseguir. Era massagista profissional, e com uma voz chorosa se lamentou. De nome Manoel Albuquerque Castilho, havia perdido todo os documentos, cartões bancários e uma boa quantia em dinheiro levados por marginais que o puseram para correr disparando tiros em sua direção. Mostrou uma cicatriz no braço dizendo era de bala. Maria Lúcia por sua vez, mesmo conhecendo a malandragem, acreditou no sujeito, pois um homem de sobrenome Albuquerque Castilho não podia ser um bandido. O camarada sentiu então um fértil terreno para contar mais estórias, e até verteu lágrimas dos olhos que acabaram por convencer Maria Lúcia tratar-se de uma vítima de injustiça social esmagada pelo capitalismo. Ao ser tratado por “Sr. Manoel” pediu à moça o chamar pelo apelido: Mané. Por sua vez Maria Lúcia disse gostava que a chamassem de Lú, simplesmente. Tomada por sentimentos diversos, ora de atração por um homem com uma vida interessante e ora por compaixão por um desfavorecido pelo destino, levou aquele pobre diabo para sua casa, onde o sujeito comeu do bom e do melhor, tomou um banho quente e dormiu no quartinho dos fundos. Maria Lúcia adotou Mané como seu protegido. Dias depois descobriu que passara a amar o sujeito. Em uma semana Mané passou a dormir na cama de Lú, tratado com um verdadeiro rei, Lú deixava Mané acordar tarde. Café da manhã com sucos, frutas, ovos mexidos, um verdadeiro cinco estrelas. Almoço com filé mignon, malpassado conforme o gosto do vagabundo, batatas coradas, um purê de batata baroa, feijão preto com carne seca. No jantar era servido cardápio semelhante e ambas as refeições acompanhadas por um bom vinho tinto seco, chileno de preferência. E Mané, ao invés de recusar o vinho, voltou a beber. De início se limitou aos vinhos das refeições carinhosamente servidas por Lú, e aos poucos voltou a ser aquele Mané de outrora, chegando embriagado em casa, mesmo assim Lù o tratava muitíssimo bem. Tinha comida, mulher, casa e tudo que nunca havia possuído em sua vida. Há coisas que não mudam facilmente e requerem uma forte determinação, o que Mané não tinha. E, que ninguém se iluda, colhemos o que plantamos. Mané saiu cedo de casa bem no dia que uma bala perdida achou o marido da vizinha muito amiga de Maria Lúcia. Era dia de folga de Lú e gastaram o tempo todo correndo atrás de documentos. No Brasil, até para morrer tem que ter documento. Fim de tarde, morto no meio da sala, iniciou-se o velório com grandes velas, o defunto com terno rasgado na parte de trás presente de um amigo, a bonita viúva extremamente chocada com a tragédia. Maria Lúcia já de saída para consolar a amiga quando Mané entra e vai direto à geladeira. Encheu de sal o copo de batida, pegou uma tigela de arroz doce, jogou quiabo por cima, Maria Lúcia não o deixou comer. Lú nem viu de onde saiu o tapa que levou na nuca, caiu para frente e conseguiu aparar o corpo, mas bateu com a testa no chão. Mané levantou, foi para o quintal. Maria Lúcia, sangrando, correu chamar o irmão de Mané que estava no velório. No quintal Mané provocou uma revolução com os animais de estimação de Lú. Deu lavagem para o macaco, banana para o porco, osso para o gato, sardinha para o cachorro e cachaça ao pato. Entrou no chuveiro com terno que iria ao velório, foi ao porão pegou o revólver trinta e oito, deu de cara que com seu irmão que lutou com Mané e levou um tiro na mão. Entra Zeca, outro vizinho, e consegue desarmar o bêbado. Enquanto Zeca atendia o ferido, Mané, todo molhado entra no velório. Deu um chute nos castiçais alugados da funerária, apagou as velas. Olhou o defunto e o chamou de filho da puta, assediou a viúva passando-lhe uma cantada, deu um beijo na mulher, que era muito séria. Pandemônio instalado no velório, chega a polícia, enche o Mané de cacetadas e o leva preso.

Maria Lúcia voltou do Pronto Socorro com um curativo na testa, chamou um chaveiro e mandou trocar todas as fechaduras de sua casa. O patrão da comunidade veio falar com ela para não se preocupar que Mané seria avisado que se entrasse na favela ou a procurasse seria morto.

Paulo Miorim

12/01/2020

Paulo Miorim
Enviado por Paulo Miorim em 12/01/2020
Código do texto: T6840390
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.