Inutilidades domésticas

Hoje acordei meio inquisidor, como se não bastasse ser domingo. Às cinco da manhã, um casal felino resolveu iniciar uma DR pelos telhados da vizinhança e concluí-la no quintal aqui de casa. Eu me perguntei por que logo aqui, no quintal de casa. O casal felino chegou sem permissão e invadiu o espaço, sob protestos dos grilos, lagartixas e uma ave terrestre de identidade não revelada. Tive que intervir na discussão, alegando meu direito à propriedade privada e determinando a imediata reintegração de posse do espaço, o que significava que deveriam de imediato procurar outro ringue para chegarem às vias de fato. Houve resistência e, para fazer vale o direito à propriedade privada, tive que contar com a ajuda da ave de identidade não revelada, bacharela em direito, que ameaçou processar o casal felino por invasão de domicílio e desordem.

O casal felino retirou-se, dizem que em direção à delegacia de polícia, para confeccionar B.O, e ficou a impressão de que briga aos domingos, principalmente, pode até dar cadeia, sobretudo quando é doméstica. É grave, não é uma inutilidade, digamos, doméstica. Uma dessas como passar ferro em roupa, enxugar pratos, forrar cama. Estes dias li um artigo segundo o qual não passar roupas é a nova maneira de ajudar o planeta. O consumo de eletricidade nas chapas é contraproducente e desnecessário. Não vale a pena arriscar a vida do planeta e, consequentemente a nossa, para usar uma camisa lisa que só vai durar por alguns minutos. Tudo para se enquadrar num padrão estético que nunca foi nosso, pois já nascemos nus, de descendência indígena.

Passar ferro em roupa é uma inutilidade, supérfluo. É assim que penso: o essencial é que esteja limpa e costurada; se bem passada, é exagero. Outro excesso doméstico é enxugar prato. Toda vez que me deparo com a cena de alguém enxugando prato, me pergunto se não há atividade mais producente para ser feita e de acordo com a preservação do meio ambiente. Lavá-los, além de higiênico, é esteticamente recomendável, mas enxugá-los é ação vã, e ainda mais aqui, nas Alagoas, com esse calor todo anual.

Enxugar pratos tem consumido grande parte do dia doméstico, pois, hoje, o maquinário doméstico cresceu; não é mais como antes, em que figuravam nas cozinhas pouco mais que uma panela de barro, uma chaleira, umas cumbucas para aparar água. Hoje os pratos são outros, maiores e profusos. Hoje há pratos para serem servidos no café, outros no almoço e ainda os do jantar. E os copos? Hoje há copos para tomar água, outros específicos para cerveja, uns mais usuais para o café. Se antes, para guardá-los, era suficiente uma caixa de papelão, hoje é necessário despensa, armário, até inventário.

Outra inutilidade doméstica é forrar cama. Por mais que me falem que forrar cama é uma atividade essencial em tratando-se de organização doméstica, discordo. Não vejo uma cama desforrada como um atentado à estética do lar. Na verdade, acho até um charme, um toque de requinte e de naturalismo em meio a tanta artificialidade doméstica. O que é uma cama desforrada ante uma casa sem teto, sem sala, sem quintal? O que representa uma cama desforrada diante de sofás de plástico, flores artificiais, casas sem janelas?

Talvez, para o casal felino, represente o início de uma DR e o fim de um domingo domesticado.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 12/01/2020
Reeditado em 14/01/2020
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