ADÃO E EVA NA LAGOA DA PAMPULHA

Um casal de jovens ganhou minha devoção uma tarde dessas na Lagoa da Pampulha, em Belo Horizonte. Perambulando pelo parque, sem rota ordinária, vi, entre a lagoa e uma pequena igreja, um rapaz e uma moça bem abraçados, se beijando com ternura.

Milhões de outros rapazes em todo o mundo abraçam e beijam milhões de moças o tempo todo. Nenhum deles inspira redação de jornal a escalar repórter para noticiá-los no boletim das 18h. Editora nenhuma envia poetas para redigir trovas sobre aspectos daquele amor juvenil.

Além de mim e de um silencioso zelador, não havia qualquer alma humana para dividir o espaço com o jovem casal. O zelador parecia ocupado demais em seu ofício para observá-los. Eu, por meu turno, estava exercendo meu ofício: ler neles, à distância, uma história de amor com todos os finais felizes.

Não creio que eles tenham me notado, tão ocupados que estavam no ofício de se abraçarem, se beijarem, de professarem juras de amor e, talvez, tecerem planos de fuga.

De repente era como se mais nada no mundo houvesse para eles naquele momento. Estavam imunes a qualquer tragédia ou triunfo. Era uma quarta-feira de futebol na cidade. Não de qualquer futebol: era a final da Copa do Brasil. De um lado o Atlético-MG, alvo de devoção de milhões de pessoas naquela cidade. De outro, o Grêmio, que arrastara uma multidão de Porto Alegre até BH. O Mineirão, palco desta batalha estava a poucos metros do casal. O épico momento estava a poucas horas da tarde do casal. Mas para eles, nada disso reunia qualquer importância. O verdadeiro palco estava sob seus pés. Ali eram deuses e a Pampulha era o chão do Olimpo. Nada mais merecia qualquer fagulha de pensamento.

Naquele mesmo dia, em Belo Horizonte, um convento pegou fogo. Uma freira de 82 anos morreu queimada. Uma violenta tempestade arrasou uma comunidade no Vale do Rio Doce. Pessoas morreram. Pessoas ficaram desalojadas. Os jornais anunciavam que 22 milhões de pessoas estavam procurando trabalho. A ciência divulgava o contraceptivo subcutâneo que garante evitar gravidez por três anos.

Na lista de preocupações daquele jovem casal não constava, suponho, nenhum desses itens. Era como Adão e Eva a sós pela primeira vez no Jardim do Éden. Todo o resto era apenas um imenso campo despovoado de pessoas, de tráfego, de hecatombes, de doenças, de conceitos filosóficos. A eternidade morou ali por alguns instantes.

Não sei o nome de nenhum deles. Não sei se trabalham, se estudam, se ele joga futebol com os amigos, se ela faz yoga. Não sei se estavam celebrando aniversário de namoro ou planejando um fim de semana na praia. Não sabia nada deles naquele momento. Não sei nada deles neste momento. Se estão juntos. Se ela se mudou para algum país e quebrou o coração dele. Talvez tenham se casado e esperam o primeiro filho.

Não saber nada disso faz do casal da Pampulha seres mitológicos para mim. A pureza como se olhavam, a leveza como se ausentavam de tudo, o frescor daquela paixão de fim de tarde, tudo isso ainda abençoa minha percepção do amor e instala em meu coração novas camadas de fé.

Anderson Alcântara
Enviado por Anderson Alcântara em 09/01/2020
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