A prancheta doada
Idos de 1978, mais ou menos. Eu estudava no SENAI, CFP4, à rua Moraes e Silva no bairro de São Cristóvão, próximo à Tijuca, no Rio de Janeiro.
Eu caminhava por uma rua linda na Tijuca. Arborizada com casas de dois pavimentos dos dois lados. Algumas construções de estilo antigo. Outras modernas, todas elas muito bonitas. A Tijuca era um bairro de classe média. Às vezes me vem à memória esta experiência e planejo procurar no Google Earth essa rua na Tijuca, nunca o fiz.
Nesses lugares há pessoas chiques. Jovens com rostos bondosos, pele bem cuidada, cabelos sedosos e roupas de marca. Essa experiência sempre me impressionou. A vestimenta que eles desleixadamente usavam, em especial, sem nunca parecerem desarrumados. As meninas com shortinhos curtos desfiados, camisetas temáticas. Os meninos vestiam calções caros, camisetas também temáticas e tênis surrados. Os homens mais velhos quase sempre usavam camisetas tipo polo, com listras horizontais. Esses detalhes chamavam-me a atenção. As senhoras de idade mais avançada apareciam com os cabelos pintados, sobrancelhas bem cuidadas, cílios postiços e muita maquiagem. Carregavam aquelas bengalas com cabos de madrepérolas. Pessoas elegantes. Nunca me encaravam. Desviavam o olhar. Não sei se por medo ou por sentirem alguma culpa por serem abastadas, enquanto eu um paupérrimo.
A gente estava sentado em um cômodo do segundo andar. Era como se fosse uma sala espaçosa com alguns quadros largados na parede bem pintada. O ambiente produzia um eco muito propício para tocar instrumento musical. O rapaz sorridente estava dedilhando o seu violão. A menina princesinha teclava alguma coisa no telefone sem fio. Ela sussurava uma canção meio inaudível, que parecia ser a melodia da harmonia que o rapaz tentava levar no violão. Eu estava lá, sentado em uma banqueta, morrendo de vergonha por ser o pobre, o paupérrimo, junto daquela gente "rica", como eu imaginava.
Logo a companhia tocou e mais quatro jovens subiram para juntarem-se ao grupo. Eles foram chegando. Alguns me cumprimentaram. Outros, nem me notaram. O rapaz do violão logo me apresentou aos demais dizendo que eu era músico e tocava saxofone e outros instrumentos. Encolhi-me o que pude tentando desaparecer. A minha voz sumiu e eu sentia-me um bobalhão inexpressivo. Cumprimentei a todos com um sorriso meio angelical e a voz quase inaudível, submissa, trêmula, além dos gestos desencontrados.
Um deles apontou para o violão e me pediu para tocar alguma coisa. Eu sorria tentando parecer simpático, mas era uma sorriso amarelado pela vergonha. O violão veio parar em minhas mãos. Eu não sabia o que fazer naquele momento. De repente, todo o repertório esvaiu-se. Não lembrava sequer de uma música completa. Não queria tocar os louvores da igreja, achava que não cairia bem ali. Dedilhava alguma coisa, ora um blues incompleto, ora umas escalas pentatônicas simples e fraquinhas. Acho que imediatamente perceberam que eu não era interessante, e voltaram a atenção uns para os outros focando no ensaio que se iniciava.
A menina dirigiu-se a mim e gentilmente pedindo o violão. Entreguei o instrumento rapidamente sentido-me aliviado. Eles, então, fizeram uma roda com as suas cadeiras e começaram a cantar e a tocar. Muito bonito. Meio desafinado, mas bonito. Cantavam uma canção em inglês, que eu não entendia e não conhecia. Eles todos deviam falar muito bem inglês, pois eram filhos de família abastada, certamente desde cedo aprendem outros idiomas, pensava eu. Eu estava ali estasiado, deslumbrado, meio afastado da roda e completamente invisível.
Logo a menina, colega do SENAI, dirigiu-se a mim dizendo que a prancheta já estava arrumada, e eu podia levá-la. A menina era muito simpática. Estava doando para mim uma prancheta de desenho usada, que ela não queria mais. Prometera-me na sala de aula do curso de desenho de arquitetura, que nós fazíamos no SENAI. Acenei meio envergonhado despedindo-me do grupo de meninos. Alguns balançaram a cabeça sem, contudo, interromperem a música. Outros nem me olharam.
Cambaleante e desajeitado desci a escada com a prancheta nos ombros e a colega tentando ampará-la para não bater e arranhar a parede bem pintada. A prancheta era bem maior do que eu previra. Estava difícil para eu conseguir carregar aquilo para o subúrbio. Pegar o trem na estaão de São Cristóvão e descer na estação de Anchieta, subúrbio da zona norte, quase baixada fluminense, enfim. Pensei em desistir do presente, mas fiquei envergonhado de parecer mal educado.
Segui andando pelas ruas chiques e lindas daquele bairro arborizado carregando aquela coisa enorme, ora na cabeça, ora nos ombros, reposicionando frequentemente a prancheta para não perder a visão do caminho. Vez outra eu parava para descansar, respirar e aliviar a carga. Caminhava por aquelas ruas bem calçadas com casas bem construídas. As pessoas que por mim passavam possivelmente julgavam que eu era algum serviçal carregando algum resto de coisa velha do patrão. Não me olhavam, muito menos ajudavam-me. Enfim, cheguei à estação de trem de São Cristóvão. Passei pela roleta com dificuldade ajudado pelo guarda da estação. Embarquei no vagão vazio com aquela geringonça verde.
No interior do trem senti-me melhor. Logo ajeitei-me encostado na parede que separava o vagão um do outro. As pessoas que ali dividiam comigo o espaço eram bem familiares aos meus olhos. Feições enfeiadas, rostos com espinhas e brotoejas empoladas. Elas usavam roupas simples, favalam alto e, quase sempre, mastigavam alguma coisa comprada dos vendedores ambulantes do próprio trem.
A imagem dos meninos "ricos" não saía da minha cabeça. "Que mundo diferente do meu!", pensava. "Que menina linda, uma princesa!", suspirava meio hipnotizado. Já naquela ocasião eu tinha a mania de escrever as minha experiências. Não fazia isso de forma disciplinada. Escrevia em qualquer lugar, geralmente nas últimas folhas de meus cadernos da escola. Escrevi uma poesia tosca para a menina princesa, mas jamais a enviei. Perdi a poesia com o tempo.
Na estação de Anchieta desci carregando aquele presente. Subi uma rua íngreme pavimentada de paralelepípedos, que ficava logo em frente à saída auxiliar da estação. Caminhei com o peso na cabeça e, finalmente, cheguei a casa, cansado, mas feliz.
Esta prancheta esteve lá em casa por muito tempo. Depois, finalmente transformou-se em um lixo qualquer. Hoje já não existe.
Essa foi uma das minhas primeiras experiências com o mundo diferente do que eu vivia no subúrbio do Rio de Janeiro.
Gideon M.G.