O ELOGIO DA SUPERFICIALIDADE

O ELOGIO DA SUPERFICIALIDADE

Sempre evitei pessoas que considerasse frívolas, fúteis e, em última análise, superficiais. Mais do que isso: Sempre evitei ser eu mesmo uma pessoa superficial. Considerava a superficialidade diante da vida o principal defeito d'um ser humano. Eu me revoltava com toda a alienação das pessoas que, envolvidas pelos ditames da Sociedade de Consumo, viviam às voltas com fumaças de luxo e conforto enquanto se negavam a refletir sobre qualquer coisa que fosse. Sim, enxergava o homem comum de meu tempo como um ser imerso n'um torpor sem fim de sonhar sonhos alheios e realizar fantasias que fora programado para ter. Não via sentido no gratuito e fortuito das coisas. 

Eu, como tantos, enxergava na superficialidade a escolha dos desligados, quando não dos desonestos… Tudo mudou recentemente para mim quando atravessei episódios seguidos de depressão e ansiedade. Percebi que ser profundo e me importar excessivamente com as coisas não me trazia bem-estar, ao contrário. Pus em crise minhas profundas análises e me dei conta que tinha uma espécie de preconceito com a alegria e que minhas certezas não passavam de verdades precárias e provisórias. Não tinha o direito de julgar o superficial como alguém limitasse deliberadamente sua realidade para não sofrer tanto quanto eu sofria. Tinha-de aceitar que não sorrir nunca também é absurdo. O mundo é um lugar difícil; a vida não é justa, mas rir das próprias misérias tem lá sua sabedoria. A partir de então, passei a ver os amantes da vida leve com outros olhos.

A vida da gente -- isto é, o breve intervalo de tempo no qual andamos pelo mundo -- é assustadoramente previsível: Estudar, trabalhar e constituir família… Esse arranjo existencial, repetido à exaustão pelas religiões e pelos meios de comunicação, se esmera em apresentar como superficiais pessoas sozinhas focadas em ter experiências prazerosas ao passo que exalta incansavelmente mães e pais extremosos em sacrifício diário por sua prole! De certa maneira, sem os grandes problemas do quotidiano familiar, não seríamos mais que egoístas obcecados com autossatisfação. A grande questão que se coloca é, portanto, de natureza moral, não ética. Isto é, em conformidade com os costumes, sempre haverá muito egoísmo na actitude de qualquer um que fugir ao chamado bíblico "crescei-vos e multiplicai-vos". Ademais, ainda permanece o senso comum de que a idade adulta só chega quando "homem e mulher deixam suas famílias para coabitar…" Entender que isso é um projeto de vida proposto pelos costumes e não por uma vida que conscienciosamente reflete sobre o que é melhor para si e para a coletividade -- certo de que, hoje em dia, esse olhar ético mais amplo se estende ao planeta e mesmo ao Universo -- é o primeiro passo avançar com questão da superficialidade e seus desdobramentos. 

Mais do que comparar estilos de vida quanto à "profundidade e pertinência de seus dramas existenciais", há-que se reconhecer de saída uma manipulação do senso comum acerca do que é o que não é importante. À medida que a ideia de "busca da felicidade", expressa na Constituição Estado-Unidense, se consolidou como um valor nas sociedades modernas, mais o papel formatador das existências passa a ser questionado e, afinal, contrariado. Os que se colocaram em contraste com a maioria -- cada vez mais frequentemente -- perceberam não experienciarem verdades mais profundas que os demais, mas também não menos. Aquilo que sempre foi denunciado como perversão ou como desvio passa a ser percebido como opção legítima. N'esse sentido, observamos que o problema da modernidade não era apenas o de mudar os costumes em função da oferta de novas tecnologias, sim de romper com projetos de vida predeterminados por líderes religiosos, regimes políticos ou sistemas sociais.

Todavia, mesmo no admirável mundo moderno, a superficialidade continuou condenada tanto pelos revolucionários que queriam mudar o mundo quanto pelos conservadores que lutavam para manter tudo como estava…. Superficiais sempre foram denunciados como estetas, dândis, esnobes, nefelibatas, promíscuos, egoístas, alienados… Enfim, eram pessoas em mundinhos que só queriam se divertir enquanto os outros, sobrecarregados por incontáveis jugos (financeiro, religioso, ideológico, moral…) olhavam com desaprovação para aquela felicidade fácil que ostentavam… Afinal, é muita ousadia querer ser feliz n'um mundo de injustiças! Para alguns, uma cegueira autoimposta: Usar de viseiras ou antolhos para enxergar apenas o necessário! A felicidade, na maioria dos casos, teria a ver com ignorância e antoengano.

Ficar na superficialidade das coisas exige uma boa dose de preguiça, mas também de autopreservação. Não ignoro que tenho a mim mesmo como principal objeto de estudo e interesse. Logo, tudo quanto sinto ou penso me é tema de reflexão. O limite para nos aprofundarmos em nós deve ser estabelecido, por via de regra, em nosso sofrimento. Se pensar na vida nos torna invariavelmente infelizes, precisamos de férias de nós mesmos. A minha consciência, habitante involuntária de meu corpo, pode se dar conta que eu não sou um lugar legal para se estar e procurar evadir. E isso não deveria ser condenável em si… Às vezes é tudo o que nos resta. O problema é, por moralismo religioso ou ideológico, combater aquilo que me faz feliz em nome de ideais ou juízos de valor que não interessam aos outros senão enquanto vigias das liberdade alheias.

Pelo sim; pelo não, viva e deixe viver! Se a escolha do outro não me faz mal, não tenho o que opinar. Melhor desmoralizar-se na superficialidade da busca d'uma ética capaz de incluir a alegria de viver do que se submeter ao lugar-comum. Afinal, ser livre é, também, aceitar a liberdade dos outros.

É isso.

Betim - 06 01 2020