A maldade do mundo
Sei bem que as coisas hoje em dia estão muito precoces, mas posso garantir que aquele menino, no alto dos seus dez anos, era ainda inocente e livre de malícia. Acreditava em tudo que lhe dissessem, pois não podia admitir a hipótese de que alguém tivesse a intenção de passá-lo para trás. E se era verdade que toda essa ingenuidade já havia lhe rendido alguns prejuízos, não era menos certo que continuava a crer nas boas intenções de todo mundo ao seu redor.
Era um menino bastante correto naquilo que fazia e que se sentia muito preocupado toda vez que considerava ter feito alguma coisa errada – embora essas coisas erradas fossem sempre coisas pelas quais nem os adultos se importavam muito. Era honesto até naqueles simples detalhes que os adultos já não consideram tão importante assim ser honesto. E se achava ter feito, ainda que remotamente, uma coisa errada, tratava logo de ir pedir perdão a Deus, que, por certo, gostava bastante do menino tão bonzinho. Vivia em paz com os seus pais, seus amigos, sua vida.
Ah, mas ele mal podia esperar pela tempestade que iria se abater sobre a sua cabeça! A princípio, até se tentou esconder do menino o que acontecia, mas era o tipo de coisa que não se podia conter e, de um jeito ou de outro, ele acabaria mesmo sabendo. Pois não é o que seu pai estava traindo a sua mãe? Fazia já bastante tempo que tinha uma amante, mas agora havia sido descoberto e a mãe queria se separar. Foi essa a novidade que chegou para o inocente garoto, que, se não via maldade em qualquer pessoa, com muito menos razão veria em seu pai ou em sua mãe. Mas eis que repentinamente ele descobre que o seu pai traía a sua mãe! Mal se pode calcular o choque que essa revelação causou sobre aquela cabecinha. A maldade do mundo veio alcançá-lo em sua casa.
Ora, se o menino tivesse descoberto que o seu pai era terrorista, que havia jogado uma bomba no metrô e matado meia dúzia de inocentes, é provável que não tivesse despertado muito mais horror do que quando soube que ele enganava a sua mãe. Não podia mais olhar para o seu pai da mesma maneira. O seu pai, estava provado, não era uma pessoa boa, porque pessoas boas não fazem esse tipo de coisa. E como é que uma criança de dez anos consegue lidar com o fato de o próprio pai não ser uma pessoa boa? O jeito que ele arranjou foi chorar, foi gritar e sair correndo pela rua, desesperado e sem rumo, com um vazio no peito que a vida nunca iria preencher.
O menino ficou morando com a mãe. Alguns fins de semana ele passava com o pai e isso era para ele motivo de grande sofrimento, pois como é que se poderia sentir-se bem ao lado de um pai que fez o que o seu fez? O pai se esforçava por agradar, deu ao filho muitos mimos e presentes, mas o menino não reagia. Às vezes a sua resistência era tanta que o pai perdia a calma e gritava com o menino. Quem então procurava acalmá-lo era a nova esposa, a ex-amante. Dizer que o menino teve que conhecê-la! Na sua cabeça, eram duas pessoas más e ele não entendia por que é que tinha que passar um tempo com eles.
A vida do menino, é certo, não foi mais a mesma depois desse episódio. A desconfiança já havia se instalado dentro de si e, lentamente, ele passou a admitir que era perfeitamente possível fazer coisas erradas de vez em quando. Já não era sempre que se lembrava de pedir perdão a Deus e nem eram tantas as coisas que ele achava que necessitavam de perdão. Ora, pois se os adultos faziam coisas muito piores do que ele, sem que lhes acontecesse nada!
Conforme o tempo passava, ele foi serenando, foi aprendendo mais sobre a vida e já não via mais o seu pai e sua madrasta como se fossem criminosos. Hoje ele cresceu e, a despeito do grande trauma pelo qual passou, leva uma vida relativamente normal.
Já está até traindo a sua própria esposa.