ESTÓRIAS DA MORTE OU HISTÓRIA DE UMA VIDA?
Era uma senhora pacata e infeliz.
Vivia "emburrada" com o destino e os percursores adjacentes.
Muitos estranhavam a sua "fortaleza" nos seus 94 anos, mal vividos.
Vítima de um acidente de trabalho, cedo ainda, aos 20 anos perdeu parte de seu couro cabeludo numa máquina de tecer.
Sobreviveu com a saúde sempre abalada, o amor-próprio corrompido e pela sociedade selvagem que agride aos seres humanos nessas situações, criou um arcabouço de tristeza na sua própria vida. (Como muitos o fazem).
Usava a sua peruca como um cobertor de plumas quentes, contra a frieza dos comentários, sempre maldosos feitos pelas pessoas queridas...
-Coitada!!!, como deve sofrer!.
...E como sempre fazem, nada fazem de bom, para ajudar.
Seus traços ainda perfeitos (em parte), a levou a um casamento (in)feliz. A falta de um filho sempre foi mais um sorriso sarcástico do destino.
O seu marido fazia troças dela, nos dias de aniversário.
Minha querida assim, minha querida assado...
Ela chorou pouco no sepultamento dele.
No tumulto do cortejo fúnebre ela havia perdido o seu lenço cor de rosa.
Um senhor muito distinto (amigo do falecido), nos seus 49 anos falava
do estranho relacionamento dela e da saúde precária lá pelo seus 80 anos.
Ela quase nem chorou quando aquele senhor distinto foi enterrado numa vala distinta, em tarde de primavera. O brilho do sol era fascinante.
Um parente dela, nos seus 40 anos falava dela com pena e algumas caçoadas frases do seu cheiro (falta de banhos).
Ela chorou bastante, quando aos 85 anos, foi na capela mortuária ver esse parente com as mãos cruzadas sobre o peito. Ela gostava dele pelo seu jeito jovial.
O seu Jardineiro, nos seus 35 anos, era esmerado artista quando se falava em arranjos de jardim. Comentava que ela era muito falante nos seus 90 anos.
Ela colheu a flor mais bela do jardim quando compareceu ao féretro dele numa manhã de domingo. Cabisbaixa comentou com uma amiga ao seu lado:
- Está ouvindo o sino da matriz? A amiga, nos seus 70 anos, assustada, disse que não.
Um dia houve um apagão na casa. Tarde da noite, aos 91 anos não enxergava nem aonde estava o telefone para chamar o eletricista.
Ficou para o dia seguinte.
O eletricista chegou rapidinho, em sua motoca, aos 30 anos.
Facilmente resolveu o assunto técnico e ainda tomou um café (que não foi descontado do trabalho).
Feliz com o soldo recebido, atravessou o portão em direção da rua movimentada.
Calculou mal o traçado e morreu embaixo de um ônibus municipal. Ela correu com sua bengala até o local e, benzeu-se, lastimando.
Ela fez questão de ir até o cemitério e abraçar a esposa grávida.
Noventa e dois anos é idade para se comemorar.
E os parentes convidados e (in)convidados lá compareceram para comer "uns" salgadinhos e o doces, deliciosos demais.
O filhinho de uma sobrinha, nos seus 12 anos, ajudou a assoprar a vela, que apagou após três tentativas, e caiu previsivelmente, sobre o bolo.
O comentário geral é que era mal presságio.
Mas enfim, a hora de descansar da "velhinha" estava chegando.
Ela chorava copiosamente, amparada pelas amigas quando acompanhou o enterro do filhinho da sobrinha. Era uma dor de dar dó.
Ela contemplava por dentre as cortinas, nos seus 93 anos de idade, tossindo e balançando a cabeça para o lado esquerdo, o vigia da casa ao lado.
Na verdade era um galpão, desses que não se sabe o que esconde.
O jovem vigia, nos seus 22 anos, recém formado, analista químico, não encontrara emprego.Seu amigo ofereceu-lhe então este "quebra-galho",
Assumiu o posto, ouviu gracinhas das vizinhanças sobre o olhar tenebroso da senhora ao lado. Fazia a ronda meio assustado, diziam que vigiava só o lado direito do galpão.
Houve uma noite em que chamou a guarda de apoio, umas quatro vezes, três vezes sem que nada fosse encontrado.
Na última encontraram, ele, desfalecido.
Ela foi saber do ataque de coração do rapaz uma semana depois.
Ele tinha sido "entubado" e tinha delírios...falava sempre - Foi ela, Foi ela.
Não deixaram ela acompanhar o enterro.
Estava muito fraca, tossia sem parar e chorava muito.
Dizem que o galpão está lá abandonado.
Tem fantasmas lá dentro.
Aos 94 anos, apesar de inúmeros convites, pouca gente compareceu ao aniversário dela.
Eu considerei uma afronta deixar uma senhora tão distinta comemorar tão linda data sozinha.
E lá compareci, "apenado".
Passei primeiro pela igreja, o pastor já me recebeu na porta grande. Nem precisei entrar, deu uma benção ali nas escadarias mesmo.
Lembro-me que ao apagar as velas, eu tive que ajudá-la a se manter de pé.
A sua dentadura foi junto com o sopro sobre a vela e aterrou no bolo de abacaxi...uma esponja resolveu a questão da dentadura.
...Mas o bolo... estava uma delícia.
AQUI JAZ O CRONISTA NESSAS LINHAS, NOS MEUS 61 ANOS DE IDADE.