ÁGUA DE COCO

Primeiro dia de 2020. Levantar só mais tarde, digestão ainda sendo processada. Corpo movendo-se, resistente e discorde, para executar tarefas indispensáveis, e apenas essas. Tomar o café da manhã talvez até fosse desnecessário mas pretendo caminhar no Parque da Cidade, prática acolhida, com frequência quase rítmica, nesse período de recesso do trabalho. Então, para não ter fome até a hora do almoço, resolvi acolher também um pedaço do tardio panetone remanescente da noite anterior. Céu escuro, nuvens em movimento, temperatura em baixa... será que vai chover?

Enquanto tento ver afastada a cisma de rápida dissipação com, por exemplo, o sumiço das nuvens e o surgimento do sol, vem outra incerteza: será que está aberta a banca que há algum tempo vende mais cocos gelados do que revistas e jornais? Feriado geral e é sabido que poucos estabelecimentos comerciais abrem no primeiro dia do ano. É lá, no quiosque simpático situado à beira de um grande estacionamento, que me hidrato para a caminhada sorvendo a deliciosa água de coco em um condenável canudo de plástico. Advirto a mim mesmo que o quiosque deve estar fechado, tomo um copo de água do filtro e defino que pago para ver se a chuva cai ou não. Vou para o Parque.

Ainda em casa, antes de me dirigir ao carro, começo a formar juízo sobre a atitude do dono do quiosque de não ir trabalhar. Teria ele a prerrogativa de se conceder descanso nesse dia? Mas..., e as pessoas que forem caminhar confiando que terão a costumeira água de coco gelada à sua espera, estaria ele correto em frustrá-las? Afinal, durante todo o ano que recém terminou, elas mantiveram o seu negócio, e quiçá a sobrevivência dele e de sua família. Caramba, seria ele assim tão infame? Calma lá! Ele também merece descansar, pelo menos um único dia no ano, e as pessoas têm que compreender isso. Afinal, ele deve ter vindo aqui durante todos os 365 últimos dias, ou quase isso, a fim de propiciar o precioso líquido para quem não quer ficar desidratado com o calor ou com com a seca típica do cerrado. Ou com ambos. Então ele merece descansar, sempre atende com presteza e discreta simpatia, não deixando ninguém ficar esturricado.

E assim fui eu, vendo alguns pingos de chuva como que brotarem do para-brisas do carro, já que não os via caindo. Passo por algumas quadras comerciais e vejo que as lojas estão todas de portas fechadas, inclusive os três supermercados que estão no trajeto. Penso em voltar para casa, parece que vai chover mesmo, mas a curiosidade não me permite a meia-volta. Meu lado direito quer que o homem esteja a postos, furando cocos, colocando-os sobre um suporte para que não rolem e os entregando à freguesia. Outro motivo me leva a querer que ele esteja a postos: no outro quiosque, que fica há uns 20 metros de distância, o coco é 1,00 real mais caro, e são cocos iguais, verdes e com água dentro! Enquanto meu lado direito quer o homem no trabalho assumindo o seu papel na sociedade, o lado esquerdo aceita, impassível e compassivo, que ele usufrua o benefício legítimo de um dia para descansar junto à família. Meu lado esquerdo acha que esse é um direito incontestável que o homem possui e quer lhe garantir o que é seu.

A curiosidade se acirra dentro de mim, me atormenta, até que, finalmente, chego ao meu destino. E veja só, o quiosque está aberto. O líquido salvador não estará em falta. Bem, eu já tinha tomado água antes de sair de casa, se tomar agora a água de coco, no início da caminhada como costumo fazer, logo precisarei de um banheiro e eles ficam longe um do outro no percurso da caminhada. E não sou dependente da água de coco para fazer caminhadas, ora essa. Não preciso dela para nada, principalmente porque o tempo está chuvoso e o risco de esturricagem é menor. Demoro alguns minutos dentro do carro para ver se a chuva cai ou desocupa a moita. Ela não desenrola, eu aproveito a valentia que tomou conta de mim e vou caminhar, chova ou não chova. Não chove nem deixa de chover, caem pingos esparsos em alguns trechos da via para pedestres pela qual as pessoas transitam correndo, trotando, de patins, patinetes, velocípedes ou, simplesmente, caminhando. Faço minha caminhada ouvindo música do celular com fones de ouvido. Dá calor. Quando chego novamente ao quiosque-banca dou bom dia ao dono, desejo um feliz ano novo e peço uma água de coco, natural ou pouco gelada. Não sou de ferro, nem quero esturricar.

Silva Edimar
Enviado por Silva Edimar em 02/01/2020
Reeditado em 04/03/2020
Código do texto: T6832211
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