NATAL IMPERFEITO, DESCULPEM

A longa mesa retangular, como todas, tem duas cabeceiras e dois lados, e uma família dividida à esquerda e à direita. No meio o peru, o pernil, a farofa, a maionese e o tropeiro. Tudo disposto e ao gosto da família classe média em seu tradicional encontro de final de ano.

Imaginei o discurso saindo de um dos lados: "Gente, desculpem ter votado no Bolsonaro, me perdoem. Ele não é perfeito."

Alguém do outro lado retruca: "Eu avisei!"

O chefe, na cabeceira, intervem: "É Natal, crianças, data de harmonia. Vamos mudar de assunto?"

Silêncio...

Silêncio. Poucos se servem à mesa e os neo-ativistas da família dão sinal de desconforto. O "eu avisei!" não consegue segurar: "Tá vendo, agora que errou feio vem pedir desculpas. Ainda bem que reconhece que votou num homofóbico, misógino, fascista, racista e... (faltou a palavra).

Da cabeceira vem a ajuda: "...ladrão!".

Silêncio...

Alguém, mais conciliador, arrisca: "Ladrão? Acho que não. Em um ano de governo não ouvi falar de escândalos de corrupção."

O pedido de desculpas, aproveitando a deixa, continua: "Peço desculpas por ele não ser perfeito como os adversários gostariam que fosse e como os seus candidatos o são.. Por eu ter votado em uma pessoa que está tentando consertar o país. Peço desculpas por ele não ter roubado os Fundos de Pensão, Caixa Econômica, Banco do Brasil, BNDES, FAT, Pro-uni, Fies, Bolsa Família, Bolsa Pesca, Petrobrás... Peço desculpas por ele ter colocado nos Ministérios técnicos e administradores honestos, que não roubam e procuram retribuir a convocação com entusiamo e patriotismo. Peço desculpas pelo resultado não ser instantâneo, tipo acabar com o desemprego e com a pobreza em um ano, tendo conseguido só chegar perto de um milhão de empregos de carteira assinada. Peço desculpas por ele ter liberado o Fundo de Garantia e o PIS, Peço desculpas pelo 13º pago ao Bolsa Família. Peço desculpas por ele mandar abrir a "caixa preta" do BNDES, cuja tarja estava com o carimbo de "secreto até 2028". Peço desculpas pelo pente fino no INSS que vai gerar uma economia de 10 bilhões ao ano e pela revisão dos cartões do Bolsa família que eram desvios para quem não precisava. Peço desculpas por ele não exaltar a democracia exemplar da Venezuela e a substituir nosso deficitário atendimento médico pela alta medicina cubana, de tão baixo custo aos nossos cofres. Desculpem, tenho que pedir perdão pelo meu presidente ser só um homem comum, com defeitos, mas também com acertos, e o que é principal, querer que os acertos superem os enganos...".

Pensei rápido, tudo isso. Quando me dei conta, senti que os familiares que estavam do outro lado da mesa estavam com os olhos pregados em mim. Será que pensei em voz alta? Pigarreei, estendi o prato e pedi para alguém do outro lado: "Por favor, me alcança uma fatia do pernil!".

Mais tarde, em casa, pensei sobre o que pensei e brinquei comigo mesmo: se colocar isto na Internet vai ser um tal de: "E o Queirós?"

Armand de Saint Igarapery - textos no Face e no Recanto das Letras - também em livro.

Igarapé - Natal de 2019