Perdidos na vida

Dizem que, na vida, precisamos de objetivo, no singular ou no plural, capaz(es) de dar sentido à vida ou ao que lhe assemelhe. Quando alguém próximo ou distante de nós ousa ir na contramão desse mandamento, quase sempre dizemos que é um ''perdido'', que não quer nada com a vida. Toda vez que ouço das bocas do mundo e seus veículos expressos a sentença "Fulano não quer nada com a vida", me pergunto que significa ''Não querer nada com a vida?"

Ontem um amigo me veio se queixar de amor partido. Sua mulher, até onde sei a única dos últimos dez anos, o abandonou, alegando que meu amigo não quer nada com a vida. Só agora, depois de mais de uma década de convívio, ela percebeu que meu amigo não quer nada com a vida. Mas que vida é essa que meu amigo desconhece? Será a mesma da sua ex-esposa? Ou a que andam vendendo no Teatro da Broadway? Ou ainda esta que nos leva dois terços ou mais da vida, da vida longe dos sábados e colados às segundas-feiras?

Longe de ser coach de relacionamento, mas desconfio de que a ex-esposa de meu amigo passou a enxergar a vida de modo diferente. Nada de errado há nisso, tal qual bem sabe Heráclito de Efeso e seu rio, que nunca é o mesmo, pois está sempre a fluir. Penso, porém, que a ex-esposa de meu amigo deveria ter sido compreensiva com o conceito de vida de meu amigo e de como usufruí-la. Mas Talvez ela tenha recebido aulas de algum coach de relacionamento, esse profissional tão requisitado ultimamente, que a orientou a buscar seu objetivo na vida, com metas e tudo a cumprir. Um objetivo que excluía de sua vida o meu amigo servente de pedreiro, esse "perdido", como, segundo ele, ela tanto enfatizou.

É uma pena ela não ter dado a meu amigo o direito à defesa e ao contraditório, esse direito que os "perdidos" nem sabem que têm. Porque meu amigo não sabia que era um ''perdido''. O Governo sabe seu nome, onde mora, o que come, sua idade, seu programa de tevê preferido. Meu amigo tem nome próprio, RG, CPF, título de eleitor e já até serviu no Exército, fato que não se orgulha de destacar. Hoje é servente de pedreiro, e com orgulho. Mas a ex-esposa de meu amigo não vê nisso motivo de vida. Talvez a vida que andam vendendo no Teatro da Broadway ou a que nos expõem nos veículos expressos, a que nos leva dois terços ou mais da vida, da vida longe dos sábados e colados às segundas-feiras, tenha-a convencido de que, na vida, precisamos de objetivo, no singular ou no plural, capaz(es) de dar sentido à vida ou ao que lhe assemelhe.

Talvez a ex-esposa de meu amigo esteja certa e nós todos, os perdidos, devêssemos mergulhar novamente no rio de Heráclito de Efeso, para emergirmos achados. Ou então, o que me parece mais razoável e de bem com o objetivo do Mercado, devêssemos contratar um coach, desses que, a preço geralmente nada módico, nos ensinam o conceito de sentido da vida. Assim, pelo menos, se não encontrarmos um motivo para a vida dos perdidos, pelo menos ajudaremos a aquecer o mercado de coach, o que, por sua vez, tem efeito positivo sobre a Economia, cujos lucros vão todos para abater a Dívida Externa, a impagável e que todo dia contribui para torna a vida de muitos dos perdidos na vida um rio de amarguras.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 21/12/2019
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