PICADINHOS EXISTENCIALISTAS - PARTE VIII
1---Ainda polêmico e revolucionário com mais de cinquenta anos... abordando com franqueza temas como casamento, sexualidade, aborto, lesbianismo e maternidade, o livro "O segundo sexo", de SIMONE DE BEAUVOIR (1908/1986), proibido em diversos países, em especial no médio-oriente, guia até hoje a luta das mulheres em todo o mundo pela igualdade de gêneros, ou melhor, pelo direito de ser mulher. "Não se nasce mulher, torna-se mulher", resumo dado pela escritora e filosofa a um não destino biológico que determine um papel secundário. Lema de militantes feministas no cinquentenário do livro, em Paris: 130 mulheres de 37 países e culturas diferentes num encontro. O livro não envelheceu, na época do lançamento atacado pela esquerda e pela direita, porque as ideias eram vanguardistas em 1949 e o mundo pouco mudou. A fala diplomática sobre temas tabus voltaram à tona no movimento feminista dos anos 70. Inclua-se a atual união civil entre pessoas do mesmo sexo. SIMONE ingenuamente acreditou na naturalidade... mas certas ideias ainda enfrentam resistência na própria França, franca aceitação nos centros acadêmicos dos States. Pejorativamente chamada de "Sartreuse", forma de classificá-la como coadjuvante de SARTRE, começou a inquietar-se com o tema e pensou numa autobiografia. Rodeada por efervescente meio intelectual de amigos de SARTRE, como CAMUS, sem distinção no mundo boêmio de Saint-Germain-de-Prés, constatou que apenas ser mulher não era nada. De origem aristocrata em economia decadente, observadora voraz do universo ao redor, SIMONE foi a pioneira em falar sem eufemismos de vagina-clitóris-prazer... ela, eterna referência do feminismo. --- Neste 1949, escândalo: a direita, grupo de escritores católicos, liderados por François Mariac, escritor, disse ferinamente saber tudo sobre a vagina da moça; a esquerda, comunistas atacando pois a luta de classes libertaria as mulheres, estas acreditando o homem como opressor. SIMONE taxada de lésbica e imoral. Mais tarde, ela adotaria a expressão "feminismo radical e absoluto" para se referir à causa feminista. Nos anos 50, ela e Sartre embrenhados pela extrema esquerda; no fim dos 70, certa decepção dela, pois pensara vitória feminina ligada ao socialismo - sonho bastante utópico e "a situação das mulheres não difere para melhor no mundo capitalista" (Simone, jornal "Le Monde", 1978). Proibida divulgação de sua obra no mundo comunista). --- Escândalo com resultado positivo, farta publicidade, em uma semana vendidos 22 mil exemplares na França. Escritos de Simone a partir de experiências pessoais /recusa em casar, ter filhos, ser monogâmica, fatos dispensáveis para ser feliz/ sob críticas de feministas americanas: "ponto de vista de mulher branca, classe média"; defensores da universalidade responderam como um dos méritos de "O segundo sexo" era atingir mulheres que pensavam estar sós em seu inconformismo. --- Escritora premiada em 1954 com o Goncourt, cinco romances, uma peça e vários livros de memórias (entre eles, reunião da cartas trocadas com o escritor americano NELSON ALGREN que conhecera em 1947 e classificou como "o único amor passional" de sua vida). --- Muitas viagens... Em 1960, ao Brasil, o casal francês tendo como anfitriões JORGE AMADO e ZÉLIA GATTAI - contexto político então muito conturbado, ruptura do States com Cuba, eles recebidos em todos os locais do Brasil aos gritos de "Cuba sim, Ianque não" e levados a se pronunciar sobre isso em prejuízo da exposição das ideias intelectuais e filosóficas.
2---Paris, cidade-chave - ali nasceu, cresceu, conheceu Sartre, escreveu ficção e teoria. Paris mudou, é claro, e Saint-Germain-de-Prés , reduto intelectualmente efervescente na época, virou movimentado reduto turístico; Montparnasse, onde morou grande parte da vida, abriga sex shops e fast food... Ainda existem os prédios, cafés e praças, daí o lançamento de "Le Paris de Beauvoir" - casas onde morou, escolas onde estudou e lecionou, fotos com textos explicativos e trechos do inédito "Carnets de jeunesse" (diário da juventude), sobre o contexto onde viveu até os 11 anos (mudou-se com a aristocrática família empobrecida para um apê sem água corrente!: pai esvaziava a cada dia o pesado compartimento de água do banheiro e não havia aquecimento no frio glacial do inverno). --- No célebre café Les Deus Magots, onde encontrava às escondidas com o amante Jacques Laurent Bost, ela escreveu que era sempre interrompida por gente amável e divertida, e assim tomou a decisão de passar as manhãs em seu quarto, num apartamento de três peças sem chuveiro, magnífica vista para Notre Dame, onde escreveu "O segundo sexo". Disse depois a Nelson Algren ser a melhor acomodação disponível em Paris, café da manhã e amor de primeira a toda hora.
3---Em 1977, SIMONE e outras cinco feministas criaram a revista "Questions féministes". Entre as fundadoras, revezando-se em seminários, a socióloga CHRISTINE DELPHY, paletó negro e cigarro, uma das organizadoras do encontro do cinquentenário do livro, disse que o mais forte da obra foi o enorme poder subversivo, de circulação clandestina durante a Espanha de Franco, idem no Quebec em 1964, devido a pressões da Igreja - só traduzido na Índia e na Coreia em 1989 e na Rússia em 1998. Livro sempre sofrerá barreiras sob fortes dogmas religiosos, porém novas traduções surgindo no mundo todo, mesmo com trechos mutilados, por exemplo, politicamente incorreta na África a palavra 'negro'. A estrutura social não mudou muito, como progresso limitado da legalização do aborto em alguns países, ainda superficialidades de mudança. O que era obsceno em 1949 no Irã continua obsceno. As ideias de Simone não se prendiam a cor, mas sim a um denominador comum, não biológico, mas social.
4---Ideias da líder feminista - Maternidade: "Há mães infelizes, azedas, insatisfeitas. (...) É errado pensar que uma criança é obrigatoriamente feliz nos braços da mãe." --- Virgindade - "Nada pode ser mais desejável ao homem que aquilo que jamais pertenceu a outro ser humano; a conquista se torna um evento único e absoluto - terras virgens sempre fascinaram exploradores. (...) Mas atrativo erótico aliado à juventude (...), não mulher de 40 anos, ainda bela, supostamente virgem." --- Homossexualismo: "O homossexualismo feminino é uma tentativa entre outras de conciliar sua autonomia com a passividade da carne. Se evocarmos a natureza, toda mulher é homossexual. A lésbica se caracteriza pela recusa do homem e seu gosto pela carne feminina. Toda adolescente teme a penetração, a dominação masculina, tem certa repulsa ao corpo masculino, sendo o feminino o objeto do desejo." ---Aborto: "Argumentos evocados contra é fazer crer em algo perigoso. (...) A maternidade forçada acaba lançando no mundo crianças frágeis, cujos pais serão incapazes de alimentar, crianças mártires vítimas do assistencialismo público - a sociedade que luta pelos direitos dos embriões logo se desinteressa pelos bebês quando nascem."
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FONTE:
"Revolucionário aos 50 anos", artigo de Helio Hara - Rio, jornal O Globo, 24/1/99.
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