DRUMMOND - LEMBRANDO O ONTEM...

1---Amar o perdido / deixa confundido / este coração. / As coisas tangíveis / tornam-se insensíveis / a palma da mão. / Mas as coisas findas / muito mais que lindas / essas ficarão. - CDA

Primeiro dos anos 80, cinquentenário do primeiro livro do poeta CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE, "Alguma poesia", publicado em Belo Horizonte em abril de 1930. Na então florida-adolescente-puritana-conservadora cidade que acabara de viver o clima de ebulição dos anos 20, belle époque, um pequeno livro de 147 páginas e 56 poemas, o começo de longa e gloriosa trajetória poética. Impresso pelo escritor Eduardo Frieiro nas oficinas do órgão oficial do Estado, o "Minas Gerais", do qual DRUMMOND era secretário, descontado pagamento em folha, editor inventou selo fictício de Edições Pindorama, tiragem de 500 exemplares. Banquete oferecido pelos amigos, poeta com 28 anos de idade. Agora, 78 incompletos, um jantar no aristocrático Automóvel Clube de BH - muita bebida, muita algazarra, relembrando a remota geração de intelectuais.

2---Em duas livrarias da capital mineira, listas de adesões à homenagem ao jovem poeta pelo lançamento de "Alguma poesia" e os jornais noticiando "o acontecimento que vai exprimir, de maneira mais viva, a repercussão do livro", que foi ao mesmo tempo muito positiva nos meios acadêmicos. ----- O antigo "Diário de Minas", quartel-general dos modernistas, embora órgão oficial do sisudo e dominador Partido Republicano Mineiro, afirmou que "era o livro de que BH precisava para passar de cidade-menina a cidade mulher, lendo os poemas cheios de perversidades do seu maior poeta, que tem experiências amáveis no ritmo, experiências amargas na cadência, no jeito de encarar o seu quinhão cotidiano de sensaboria e de encantamento" - provável de João Alphonsus, redator do jornal, o mais destacado prosador modernista. ----- Pelo "Minas Gerais", na véspera da festa realizada em 15 de junho, domingo, o poeta - representante do Inspetor Geral de Instrução - fôra à gare da Central receber o presidente do Estado (governador), procedente de Juiz de Fora. ----- Às 20 horas, "sentaram-se à mesa em forma de peixe, ladeando o homenageado", 47 amigos, vários que se projetariam nacionalmente, ou na literatura ou na política, como por exemplo Pedro Nava, Cyro dos Anjos e Francisco Negrão de Lima. Milton Campos, entre aplausos repetidos, previu poesia com esplêndido 'humour', referiu-se à "imensa alegria da gente moça de nossa terra, que se orgulha de Minas dar ao Brasil um grande poeta". Repetiu um verso do livro: "Hoje tem festa no brejo". E acrescentou: "E é justo que a saparia se rejubile, sem embargo das marteladas metódicas do sapo tanoeiro, na eterna atitude em que o encontrou Manuel Bandeira: fazendo rimas com consoantes de apoio e comendo hiatos (...) o antropofagismo daquele tribo de São Paulo não parece ter despertado o entusiasmo que merecia". ----- DRUMMOND agradeceu: "Permiti que vos conte anedota do anjo - anedota particular, sem graça nenhuma perfeitamente inverossímil. Recebi a vista de um anjo - duas asas, claridade, voo rápido, que chegou, mais leve que o ar, até minha materialidade terrena, zona privativa de pássaros e aviões, como soube da minha casa e apareceu translúcido. (...) Era um anjo torto (...) delicadamente torto do lado do coração (...) nele o coração pesava mais do que o resto do corpo. (...) sem adjetivo para qualificá-lo. (...) Um anjo era para mim como um vagem, por exemplo a primeira que fiz sozinho, rumo ao colégio, com horários e baldeações dificílimas e em cada estaçãozinha do poeta Ribeiro Couto uma menina de chitas vendendo caju, um menino apregoando jornais, a passageira gorda esquecendo metodicamente um embrulho, e a inquietação, a alegria, o desejo, o diverso viajando comigo.........

(Segue.)

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Rubemar Alves
Enviado por Rubemar Alves em 13/12/2019
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