A saga das palavras*
Quase dois meses sem escrever nem aqui e nem em lugar algum.
Tive vontade, tive algumas ideias, mas as palavras sumiam, ou eram absorvidas pelas inúmeras camadas do meu ser.
Transformaram-se em outra coisa, transmutaram-se e escondidas estavam só aguardando algo, um clique, uma centelha, o estrondo que antecipa uma avalanche de palavras.
Este conteúdo mutante, ora assim, ora assado, é incontrolável. Palavras ferais, selvagens, naturalmente violentas, que nada mais querem, além de serem deixadas em paz. E assim o fiz.
Deixei-as aqui dentro, ainda que não soubesse onde estavam ou em que haviam se transformado. Deixei-as aqui, entre os burburinhos do meu cérebro, à sombra dos medos, da insegurança, sendo açoitadas pelos ventos cortantes das esquinas de uma cidade fantasma, cheia de lembranças de outras palavras igualmente não ditas nem escritas.
Escondidas atrás de vidraças sujas e embaçadas, as palavras fujiam a cada raio de luz que ousava clarear as salas empoeiradas da minha mente, como baratas que só saem das tocas e bueiros à noite, sob o escudo da escuridão, fazendo-as invisíveis e inalcançáveis, indistintas do chão, da parede, do rastro de folhas mortas que se acumula numa boca de lobo.
Mas elas aceitaram sair um pouco, mostrar-se à luz e descobriram que a luz não podia fazer-lhes mal algum. Se lhes mostravam o que haviam se tornado após tanto tempo na noite, não lhes parecia importar. E foi como se aceitassem, olhando para seus contornos pálidos com seus grandes olhos negros em surpresa e maravilha, descobrindo e redescobrindo que o que lhes cabe neste mundo não é o lodo e o breu, mas o cintilar brilhante de águas límpidas e um céu azul, azul, azul.
Não cabe aqui explicar que gatilho foi esse, mas deixo saber que o estrondo foi alto, muito alto e que foi sentido como uma lança que atravessa o corpo de um lado ao outro, tão forte que anestesia, que deixa morto o olhar, que transforma a respiração em uma sequencia angustiante de suspiros profundos e melancólicos.
A dor vai passar, como as palavras perceberam que a luz é boa e deixaram de sentir queimando-lhes a pele, pois a aceitaram.
Aceitar a luz não é negar a escuridão, mas valorizar a existência dela como um contraponto necessário ao próprio conceito de luz.
Aceitar a dor é valorizar a ausência dela.
A vida segue e que as palavras venham de onde quiserem vir.
Jefferson Farias
*Publicado originalmente em https://ocronistainutil.wordpress.com/2019/12/13/a-saga-das-palavras/