A lavadeira, o carroceiro e os lucros do Itaú
Mais uma vez o prazer de receber estudantes para entrevistas. A curiosidade quase ingênua, a busca despreconceituosa de informações, a desinibida irreverência. Um bálsamo em meio a tantas tarefas e aperreios. Não raro um retorno a fatos e sensações de um passado distante.
- Quando foi que o senhor despertou pela primeira vez para a miséria e a injustiça? – dispara o garoto imberbe, fazendo as vezes de repórter.
De algum lugar da memória, ressurge Lagoa Seca, bairro periférico de Natal, no final dos anos 50. Num fim de tarde, a visita à lavadeira lá de casa, recém-chegada da maternidade, onde dera à luz uma menina. Uma lata de goiabada, queijo do reino, frutas, para o resguardo, e roupinhas para a recém-nascida. Dona Oneide, a patroa caridosa, e o filho de 9 a 10 anos, num gesto de solidariedade costumeiro na família do comerciante Renato Siqueira.
A casa de taipa, de um só cômodo, precariamente erguida por trás da padaria, num sítio semi-abandonado. Fora a cama velha, um dos pés apoiado em tijolos, uma mesinha tosca, uma velha bacia de alumínio, uma quartinha e duas latas de óleo Salada feitos canecos, nada mais possuíam Rosinalda, a lavadeira, e o marido Horácio, carroceiro por ofício. Não tinha cadeiras, poltrona, rádio, armário, banheiro, cristaleira, bibelôs. Sequer um crucifixo e um quadro do coração de Jesus na parede. Aos olhos do garoto, em nada aquilo se parecia com casa de gente.
No retorno, uma estranha sensação de desconforto e muitas perguntas que a mãe não conseguiu responder. Por que possuíamos tantas coisas que aquele pobre casal não possuía? E aqueles palacetes de ricaços que saíam na revista O Cruzeiro, motivo de comentários dos adultos?
Por que uns com tanto e a grande maioria com quase nada? A pergunta e a lembrança da felicidade resignada da lavadeira franzina e do carroceiro de feições rudes e sorriso fácil têm nos acompanhado a vida toda. Reaparecem de vez em quando. Como agora, diante da pesquisa CNT/Sensus que aponta o desemprego como principal preocupação da maioria dos brasileiros (apesar da reconquista de mais de um milhão de novos postos de trabalho com carteira assinada no ano passado, na esteira do crescimento do PIB) e do anúncio do astronômico lucro líquido de R$ 3,776 bilhões alcançado pelo Banco Itaú em 2004. “O maior resultado da história do sistema bancário brasileiro”, segundo analistas especializados.
Quantos Rosinaldas e Horácios, no Brasil de hoje, padecem das restrições à produção e à expansão do emprego, condenados a lavar roupa e a conduzir carroças, a vida precarizada, em contraste com a minoria superabastada que se beneficia da financeirização da economia e da persistência de um modelo de desenvolvimento socialmente excludente e concentrador da riqueza?