Resgate Frustrado...e pessoas horríveis
A estrada nos proporciona prós e contras. O prazer de dirigir, bom Rock’n’Roll na playlist, as belas paisagens, algumas um tanto bucólicas, o relaxamento... quando rolam caronas, boa conversa e camaradagem. Apesar de todos esses predicados, a rotina da estrada oferece, principalmente aos protetores de animais, dissabores difíceis de lidar. São poucas as pessoas que são responsáveis e que guiam lembrando dos animais que pela pista trafegam. Desde cães e gatos a animais silvestres, uma infinidade deles são atropelados diariamente, e isso acontece do Arroio ao Chuí. Já resgatei cães, gatos, corujas, gambás, morcegos, até um porco... alguns perdi, outros salvei...e segue a vida... Mas para muitos condutores, além de não lembrarem – ou não se importarem - desses animais que cruzam nossas vias, a prestação de socorro é algo que não faz parte de suas rotinas. Muitas vezes, um atropelamento é inevitável, isso é verdade, mas a omissão... o que posso dizer de quem se omite e não os socorre?
A quarta-feira começara normal: o celular me acorda às 6:20. Colocar uma roupa, tomar café, tudo jogo rápido. Cinquenta quilômetros me separam da escola na qual leciono. Quando o cabelo se mostra rebelde, um boné ou boina resolvem o problema. Estrada de interior, com asfalto recentemente recuperado, em boas condições. Carona ao lado, boa conversa. Pé na tábua...
Não mais do que quinze minutos rodados. Um gato deitado, ou melhor caído, na pista contrária. Percebo que há algum movimento, pelo menos na parte frontal do corpo. Procedimento padrão: faço a volta, encosto ao lado da pista, alerta ligado. O pior se confirma: não dormia, não descansava, não brincava...tinha sido realmente atropelado e parecia bem mal. Sangue em minhas mãos. Sangue mancha o carpete do carro. De forma alguma o deixaria ali, à míngua, agonizando. Na pior das hipóteses, um veterinário praticaria a eutanásia ou, quem sabe, com sorte, sobrevivesse...talvez se tornasse especial... já consegui adoções bastante improváveis para animais especiais.
Voltando à cidade e, já preocupado com o atraso que se desenhava, contato o meu “vet preferido”. Sigo até sua clínica e, em quinze minutos, ele lá chegava para prestar o devido socorro ao bichano... infelizmente, nosso amiguinho não resistiu e morreu tão logo ele chega... Acredito que até antes. Sequer tinha esfriado. Hemorragia interna era o diagnóstico. Essa nós perdemos parceiro... mas não pela omissão, como foi o caso do atropelador e dos - provavelmente - muitos que ali passaram e nada fizeram, afinal ninguém quer chegar atrasado ao trabalho, não é mesmo?
Dissabores parte II: De volta à estrada, atrasado. Caixa de papelão com nosso finado amiguinho no porta-malas. Tristeza. Não havia muito o que se fazer: deixaria aquele corpo em algum ponto do caminho, num dos muitos onde não há casas, a fim de não causar transtorno algum com mau cheiro. No meio do mato, afastado da via, para não colocar em risco outros animais que fariam dele suas refeições. Enterrar estava fora de cogitação, visto o atraso e a falta de ferramentas para cavar... Não seria o ideal, mas o tempo, as intempéries e animais silvestres rapidamente se encarregariam das coisas, como acontece em qualquer mata ou floresta. É a ordem das coisas, a natureza. Eu pediria perdão ao bichano por não enterrá-lo e, tenho certeza, ele compreenderia.
Encosto o carro. Nenhuma casa por perto, lugar deserto com apenas um ponto de ônibus a distância de uns cinquenta metros. Retiro a caixa da mala e me dirijo ao mato. Deposito nosso amigo, já frio, em meio a alguns arbustos. Ouço então uma voz e vejo que vem de uma senhora – talvez 55 anos, algo assim – que atravessa a estrada enquanto me interpela rudemente:
- O que tem nessa caixa que você tá deixando aí?
Imediatamente entendi o questionamento: sou protetor e faria o mesmo. Vendo um carro parando ao lado da estrada e tirando uma caixa da mala, a primeira coisa que viria em minha mente: está abandonando uma ninhada de filhotes... gatos, ou cães. Infelizmente é prática muito comum. Percebendo a sua intenção – até então muito nobre - e, apesar da rispidez com a qual fui abordado, tento resumir:
- Eu achei esse gato atropelado, ainda estava vivo, voltei à cidade, levei a um vet, infelizmente morreu e agora vou deixar aí porque nada mais posso fazer, tô atrasado pra chegar no trabalho...
- Eu quero ver isso, eu vou ver isso... – Inflamada, elevando ainda mais o tom de voz.
Ah... perversa mente humana... nos julga e nos condena antes de entender todo um contexto e, se permitimos, também nos executa... xerife, juiz e verdugo, tudo isso numa única pessoa que, insana, continuava a me ofender, enquanto minha caroneira tenta – inutilmente- explicar, como eu já fizera, o que havia acontecido.
Muito bem... percebendo finalmente que o animal realmente estava morto, o tom de voz não se abranda e os ataques grosseiros continuam, afinal “isso vai feder, você não pode deixar aí, pessoas jogam muito lixo aí”.
Então eu abandonava lixo ali? Lixo, para mim, seria algo que pudesse agredir o meio ambiente, seria uma garrafa pet, uma sacola de supermercado, coisas do tipo, que levam dezenas ou até centenas de anos para se decompor.
- Mas senhora (nesse momento já bastante ríspido também) não tem nada aqui, não tem casas...
Aqui cabe um parênteses: educação existe e deve ser usada, porém dar a segunda face eu pessoalmente deixo para Cristo, a quem respeito muito aliás. Sendo assim, vendo o destempero da criatura e, percebendo a impossibilidade de alguma diplomacia, resolvo também soltar o primitivo que em mim habita. Fogo contra fogo. Ignorância versus ignorância. Estrada deserta. Ninguém olhando. Cenário dantesco. Imprecações, baixaria. Cobras e lagartos brotaram de minha garganta...nem sabia que os alimentava e que estavam ali à espera de uma oportunidade para surgirem. Minha caroneira assiste a tudo emudecida, tensa. Troca de ofensas, nervosismo. Surgem palavrões, dedo do meio em riste uma, duas, várias vezes - meu dedo, é bom dizer - mais baixo calão...
Começando bem o dia...além de perder o resgatado, coisa que tanto dói a qualquer protetor que se preze, ainda aquilo? Confesso não ser prática minha esse tipo de coisa, quem me conhece sabe bem disso. Os mais chegados à astrologia encontrarão em mim as características de um bom libriano... Ah que se lasque a astrologia... sangue de barata em frente a injustiças jamais terei... “senhor, parabéns pela atitude de socorrer o animal...muitos passaram e nada fizeram, inclusive o atropelador...mas eu vou te xingar porque isso vai feder aqui nesse lugar deserto que não tem nada nem ninguém...”
A última frase, apesar de estar entre aspas, não foi proferida por nenhum de nós. Não dessa forma, pelo menos, mas resume bem o que houve... naquela mente, nenhuma menção à minha atitude...nenhuma menção a todo o trabalho de retomar o caminho de volta, encontrar um veterinário disponível, o atraso, o estresse e a frustração de perder o peludo... somente ao fato de que aquele animal exalaria mau odor, por pouco tempo, no meio do mato onde não incomodaria ninguém... Não percebo pesar pelo animal, nada disso, somente preocupação com mau cheiro que surgiria onde nem casas por perto havia. Certos estariam, devo concluir, aqueles que passaram, aqueles que o viram e não pararam...seguiram seus caminhos, passaram o ponto no horário e o deixaram lá, agonizando, na beira de uma maldita estrada...certos e felizes, afinal é um felizardo todo aquele que não encontra, às 8:30 da manhã, uma pessoa que mais se importa com mau cheiro do que com a atitude – mesmo fracassada – de tentar salvá-lo.
Agi certo? Penso que sim...se gentileza gera gentileza, que então grosseria gere grosseria. Ela ouviu o que devia ouvir. Fui pré-julgado e condenado, talvez pela minha cara pouco bonita. Isso acontece diariamente e, infelizmente, a maioria desses injustiçados se calam.
Quilômetros a frente, num lugar deserto, afastado da estrada e longe de casas e das narinas sensíveis daquela horrível senhora, depositei aqueles um quilo e meio de vida que se esvaíra, ainda na mala do meu carro. Ficou bastante sangue no carpete. Apesar de limpá-lo, Talvez persista lá algum mau cheiro, cheiro de sangue, por um tempo... mas a jovem senhora não o sentirá...se alguém o fizer, esse serei eu.
Pobre bichano... descanse em paz, e me perdoe por não tê-lo enterrado (em outras circunstâncias eu provavelmente o faria). Talvez tenha até sido sorte sua já estar morto para não ouvir uma pessoa horrível se importar mais com o mau cheiro da sua carne podre do que com a tentativa de salvar sua – para mim - preciosa vida...
Sérgio Kuns