Notícia de jornal policial
Um prato despencou do parapeito do décimo primeiro andar de um apartamente particular, e foi parar lá na puta que pariu, (ou melhor: no puto que partiu) perto do passeio público, se partindo com grande estardalhaço, espatifando-se, despedaçando-se em mil fragmentos e outros tantos pedaços de vidro temperado, despertando interesse descomunal nos jornais, na rádio, nas redes sociais e no escambau a quatro.
E como de praxe, causando alarde e levando pranto à face da sociedade protestante.
E todos protestavam com grande sofrimento e espanto:
- Meu Deus, como foste permitir uma tragédia tão horripilante como essa acontecer?! Que desastre tremendo! Chega a ser um pecado imperdoável um artefato tão bonito, perfeito, tão rico em detalhes, tão acima da média, de classe!, tão refinado e valioso - uma obra de arte, fato! - ser quebrado desse modo tão doloroso!?...
Um preto, sem adereços nem documento, nem endereço, descalço, já caiu pronto no asfalto, perto do Hiper Bom Preço, abatido por um carro muito caro, de luxo (para além de Camaro aro 17 ou Hillux)...
Alguém que o afastou pro encostamento, pra não atrapalhar o tráfego, disse que ele parecia com o Joãozinho, que morava sozinho e ganhava o pão de cada dia vendendo camarão na feira, e cajá e jaca e caju e macaxeira...
Outro camarada já comentava que tal fulano fumava maconha e era envolvido com o tráfico - portanto, não era flor que se cheire; não prestava.
E uma pequena multidão já se formava, como urubus, em torno da carcaça sem vida.
"Isso é o que dá não prestar atenção ao atravessar a pista..."
Junto ao calçamento, no meio-fio pintado a cal, onde o presunto estava jogado de qualquer jeito, o vermelho da batida se destacava com a ajuda quente da luz do sol de meio-dia, brilhando vivamente, queimando, jorrando do corpo do defundo como um copo dágua escorrendo no ralo da pia; correndo da vida como esta recorre à morte, na UTI.
Uma testemunha de Jeová, que passava por ali, afirmou que a vítima se jogou na frente do automóvel;
outra testemunha corroborou, dizendo que muita gente se lança na frente dos carros e motos visando o benefício do DPVAT, e lamentou que a atitude culminou em morte; e ninguém comentou sobre o consumo de álcool no volante...
O repórter policial vai ter mais uma notícia pra apimentar o almoço, a estatística vai registrar mais um acidente fatal no trânsito, mais outro abastado vai estar dirigindo embriagado, enquanto outro transeunte abestalhado é atropelado "por não tomar cuidado suficiente"...
E eis que um prato, por ser de luxo, é motivo de menção (comoção) nacional; ao passo que um preto, por não ter mansão, é tratado como lixo - notícia chula de jornal...