Maria
Maria fazia o almoço todo santo dia.
Hora ou outra alguém lhe ajudava na pia, a contragosto.
Maria cozinhava nem sempre com gosto, mesmo assim, a comida saía sempre gostosa...
É que Maria sabia os segredos da cozinha: a magia dos temperos, das temperaturas, das frituras, das verduras e legumes; de modo que os cheiros que incensavam a casa eram mais prazerosos que qualquer perfume.
Maria recendia à cozinha. Era o que lhe convinha, mas o que ela queria mesmo era ser médica ou enfermeira, pra cuidar do filho enfermo com mais apuro e sabedoria - enfermidade esta, degenerativa, que não lhe permitia mover o corpo sozinho. O tempo, pois, foi como um fogo alto na panela: quando menos se se espera, o macarrão vira papa, o feijão queima, a carne, e ela não tem mais paciência, e jaz desgastada sem mocidade: o gás acaba... Tem de cuidar do filho e da casa.
Mas Maria se agarra ao seu condicionamento como a comida ao condimento, levando sabores pras bocas dos outros. E isso também é poético!
Acontece que certa vez recebeu ela visita relâmpago, bem na hora do almoço... Preocupou-se muito por não ter feito uma comida "com gosto", porque ela, como a boa anfitriã e dona de casa zelosa que era, sabia da tradição de se agradar bem os convivas. Pratos, talheres à mesa, refeição servida... Todos comem à farta - depois do "Ave-Maria", claro.
Já fartos, Zefinha quebra o silêncio:
- A comida tava muito gostosa, Maria! Benzadeus!
Maria fica muda diante do elogio repentino. O marido de dona Zefa corrobora com a lisonja da mulher, num gracejo:
- Mar Maria, se Zefinha fizesse uma comida com um tempero tão bom assim, eu almoçaria três vez por dia! e cai numa risada gostosa.
Maria tenta dizer alguma coisa, mas tímida que é, se limita a rir como agradecimento. Ela poderia dizer: "Que nada, Zé! Eu nem fiz um almoço tão bom assim... Fiz às pressas; não sabia que teria visita hoje..." Mas, na verdade, soaria como mania de engrandecimento, não de agradecimento. Todos naquela mesa sabiam da tradição ou mandamento: "quando estiveres na casa de fulana ou beltrano, após qualquer refeição, deve-se elogiar e agradecer, mesmo que não se tenha gostado do prato." É deselegante criticar o alimento feito na casa do outro, mesmo que se tenha razão. É falta de educação, sobretudo. E logo os convivas agradecem os esforços de dona Maria. Após isso, sorriem e bebem refrigerante, falando das novidades: como vai Ana, já nasceu o bebê? Sim! É tão lindo, já tá andando e tudo; parece com a mãe... Glória a Deus! E o filho de Seu João - aquele que dava um trabalhão... - tá é fazendo faculdade - o orgulho do pai; vai ser médico, mulher! Que coisa boa, Zefa, graças a Deus que ele se ajeitou! que bom que ele tem saúde pra estudar... Meu filho é inteligente que só, mas... o que lhe sobra em vontade, lhe falta em saúde. Verdarde, Maria, mas Deus é Pai e sabe o que faz! Tenha fé, que tudo é como Ele quer; tudo se ajeita. Seu filho tá nos planos do Senhor! Pois é, Zefa, Deus sempre sabe o que faz...
Depois que as visitas foi-se embora, Maria entrou no quarto resignada, rindo de satisfação por lembrar dos elogios ainda quentinhos em sua mente - pois ela há muito não sabia o que era sentir-se elogiada; raramente recebia visitas -, mas, quando os elogios esfriaram, a lembrança dos filhos de Ana e de Seu João lhe vêm à tona, e a saudade voraz do finado marido lhe põem a chorar copiosamente... Uma dor cortante como uma foiçada no peito lhe faz ficar de joelhos ao pé da cama.
Será que ela fez a pergunta blasfema: "por que, Senhor? Por que essa vida tão amarga, tão insossa?!"
Ou apenas louvou o Senhor ao lembrar do sofrimento de Jó?
"Tenha fé, que tudo é como Deus quer..."?
Fato é que o filho chamou de lá do quarto, precisando que ela limpe o cocô que acabara de fazer. Não há tempo pra lamuriar, Maria.
Extenuada, porém, suspirou ela, como se gritasse na tentativa de exorcizar a dor: "por que essa vida de merda, Senhor?"