Assim dizia minha avó

Ah minha avó! Minha avó e seu tempo de roçado, minha avó e seu tempo de criança, minha avó e seu corpo se abrindo em flor, minha avó e seu corpo de moça prendada, minha avó e seu corpo de moça feita: que já se foi, que ficou pro meu avô. Minha avó e seus grandes seios maternos, minha avó e sua triste dentadura, minha avó e suas lembranças antigas, muitas já esquecidas, minha avó e seu insuportável ronco na madrugada, no ligeiro cochilo, minha avó e sua pele escura, minha avó e seu cheiro de jasmim.

- Onde já se viu velha cheirosa?

- Mas a senhora é cheirosa sim!

- Conversa...

Minha avó e suas estórias da mocidade, de trabalho no roçado:

E tecia o vestido, aguava as plantas, pisava o arroz, punha os trambolhos no lombo do jumento, fazia o carvão, vendia alambiques na quitanda nos subúrbios da velha Caxias. Minha avó e sua mãe de criação cuidando do engenho, dando milho às galinhas, minha avó e seu pai de criação cuidando dos negócios sobre o cavalo:

- Eram dois. Um dia ele ia com um, no outro dia ele ia com o outro.

Minha avó e seu orgulho pelo pai militar. Minha avó e seu pavor de comunista:

- Os comunistas não eram perigosos não vó. Eles foram ao Araguaia pra tentar fazer uma revolução no Brasil.

- É mesmo é meu filho?

- É vovó.

- Então tá bom.

Ah, minha avó! Minha avó era quase como aquela negra Fulô. Apanhava adoidado de meu avô, seu marido e seu sinhô, conhecido pelas bandas de lá, como o sinhozinho Canuto, dono desses pedaços de terra e funcionário daquela repartição. Diziam que o homem era brabo. Que açoitava, cuspia, dava na cara, fazia o diabo com minha avó. Essa simplesmente pedia aos berros: pára Joaquim, pára. E ele continuava. O problema é que o homem tinha os olhos azuis, encanto e perdição de minha avó. E ainda dizem, as más línguas, que ela lá no fundo bem que gostava de umas boas tacas.

- E esse teu olho roxo aí Leonor? Que foi isso?

- Eu caí.

Ah, minha avó! Minha avó e sua viuvez. Perdeu seu sinhô de forma trágica, ainda hoje lhe cai uma tristeza tão profunda... Tão amarga que ela vai mastigando, mastigando numa cândida e breve melancolia... Ela fica calada. O silêncio profundo. Tão sincero. A solidão. A distância. O tempo que não volta mais. É sempre assim quando lembram dele, do meu avô.

Dizem que morreu com uma tora de aroeira a lhe sovar a cabeça. Estava cortando o tronco de uma árvore a fim de fazer estaca, um trabalho de rotina, até que um galho traiçoeiro despencou lá de cima, lhe arrancado à vida. Foi-se dessa pra pior, dizem alguns.

- Foi pro inferno, coisa ruim.

Minha avó, essa deve imaginar com sua singela e secreta esperança que este a espera lá em cima, no lugar mais aprazível do céu, numa rede tecida de nuvens.

Ah, minha avó. Minha avó e sua amnésia:

- Meu filho já serviu o exército, em meu filho?

- Servi não vó. Prefiro a comida do meu pai.

- Ahn...

A minha avó e sua caduquice:

- Ô. A comadre Maria Maguinha morreu...

Minha mãe relembrando:

- Essa já morreu há mais de cinco anos, dona Leonor.

- É mesmo é...

A minha avó e sua memória:

- Cadê a tua irmã mais velha?

- Casou vó.

- E foi?

- Foi vó. A senhora estava lá.

- Ah é...

Ah, minha avó! Minha avó e sua estória de cobras enormes, minha avó e sua bíblia sempre de baixo dos braços, minha avó e seus óculos de aro grosso, minha avó e suas nostalgias, minha avó e sua aposentadoria, minha avó e seus filhos, aos montes. Minha avó e seus netos e bisnetos, que se multiplicam a cada dia como pétalas num jardim fértil, como estrelas que se acendem no gesto indizível do anoitecer.

- Ê vó! É neto nascendo todo dia. Tanto que a senhora nem se lembra mais, né?

- É meu filho, é...

Minha avó sorri.

Minha avó chora, minha avó toma um susto com o cachorrinho em cima de sua cama, minha avó tosse, minha avó toma remédios e mais remédios, remédios que não ouso lembrar o nome, pior do que apelido. Mas apesar de tudo, minha avó é forte, é guerreira do norte. Minha avó nunca leu Gonçalves Dias, embora tenha vivido anos e mais anos em Caxias, terra do romântico poeta.

- Eu ainda volto pra lá, meu filho...

- Mas por que vovó, se teus filhos e netos estão quase todos aqui?

- Sua vó num gosta daqui de Brasília não, meu filho. Sua vó gosta é de lá.

Minha avó pensa em Caxias, no seu Maranhão velho, e em outras coisas também. Nessas horas me vem à memória, como um canto nostálgico de sabiá, os antigos versos do poeta:

Não permita deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que eu desfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu’inda aviste as palmeiras,

Onde canta o sabiá.

Ah minha avó! Minha avó e seu passo lento. Minha avó e seu constante pigarrear, minha avó e sua amnésia, minha avó e sua advertência quando estou ao computador:

- Menino sai da frente desse troço, tu vai ficar ruim das vistas.

- Tô escrevendo um livro vó.

- Ah é? Então pode...

Ah minha avó! Minha avó me contava estórias do seu tempo de lavadeira. Levava a bacia cheia de roupas sobre a cabeça, e ia à beira do rio, lavá-las sobre as pedras. Na companhia de outras, vizinhas e mais vizinhas. Todas elas, e suas cantigas de lavadeira, tecendo redondilhas. Ah, minha avó! Minha avó e seus fuxicos na janela, as conversas na calçada, as cadeiras de vime. Minha avó e suas intimidades na boca de toda vizinhança.

- Aqui em Brasília num tem isso não. Lá tem.

Ah, minha avó! Minha avó e sua amnésia acometendo novamente:

- Meu filho já serviu o exército, em meu filho?

- Servi não vó. Prefiro a comida do meu pai.

- Ahn...

Vovó e seus mortos.

- Ô. A comadre Maria Maguinha morreu...

Minha mãe relembrando de novo:

- Essa já morreu há mais de cinco anos, dona Leonor.

- É mesmo é...

A minha avó e sua memória:

- Cadê a tua irmã mais velha?

- Casou vó.

- E foi?

- Foi vó. A senhora estava lá.

- Ah é...

Ah, minha avó! Faça-me um cafuné. Conta-me uma estória pra eu dormir! Conta-me estórias do tempo antigo. Deixe-me sentar também na tua cadeira de vime, conversar na calçada da porta de casa, fuxicar a vida alheia, deixa-me deitar na tua rede tecida de nuvens.

- Deixa vovó. Deixa.

E assim dizia minha avó, bem caduquinha, num suspiro:

- Eu quero é ir me embora pra Caxias, meu filho. Pra Caxias...

***

Alex Canuto de Melo
Enviado por Alex Canuto de Melo em 05/10/2007
Reeditado em 06/09/2010
Código do texto: T681164