A Minha Juventude Nunca Morreu de Baile Funk.
Nunca vi alguém ser pisoteado em casa.
Olha, juventude, no meu tempo meu avô já era tudo isso que a modernidade chama hoje em dia de autoritarismo, ditador e tudo mais que possam nomear. Com ele não tinha nem sessão da tarde, quanto mais baile funk: "Ai da gente se não fôssemos dormir às 20h em ponto assim que ele se levantava da cadeira e ia para o quarto, arrastando os chinelos pela sala. O som do chinelo arrastado é a melhor parte que me lembro à perfeição porque aquilo era o aval unânime pra não contestar. Eu tinha seis pra sete anos apenas, mas já sacava bem de mímicas. Matrix no meu tempo era meu avô em pessoa e não o nome de um filme. E nem era só isso, naquele tempo não tinha linguagem verbal, bastava que ele desse uma olhada firme e a gente era capaz de traduzir o inferno de Dante à caminho. Na cintura, um calibre 32 Smith Wesson com cabo madrepérola de colecionador era o juiz. Já de assistente, havia ainda um chicote (reio) de couro pendurado na parede da sala sempre à sua disposição, medindo cerca de 3 quartos de comprimento e com uma capacidade impressionante de dar uma duas voltas numa só lapada. Nunca me aconteceu, mas cantava alto e bonito. Quando ele dava uma rodada pra cima de alguém, até o cavalo pastando há distâncias saltava as erelhas pra cima só de ouvir o estalo. Não tinha quem se aproximasse do cavalo solto no pasto. Embora manso, o bicho ficavava veiaco por pelo menos uns três dias sem que ninguém pudesse se aproximar. Rapaz, vocês não sabem nada, ele era uma versão arcaíca de Bolsonaro com uma guinada robusta da frieza de Javier Bardem em "Onde os Fracos Não Têm Vez", ótimo filme pra vocês.
Ninguém no raio daquela cidade ou então há quilômetros dali ousava desafiá-lo. Quem viu, viu, quem não o viu, não tem replay.
O velho era o aço inoxidável. Sua reputação era vista por todos como um homem da lei, do senso e da ordem. Tentou se eleger a vereador por vários anos seguidos, e até fez um ótimo trabalho comunitário pelas redondezas onde ajudava as pessoas com seu Jeep Willys, aquilo sim era um SUV ostentação no meu tempo, um utilitário relíquia da família com o qual ele gastava uma nota preta com reformas de tempos em tempos de tanto socorrer o povo pra cima e pra baixo, nem assim o povo teve coragem de votar nele. Nunca se elegeu.
Do jeep eu guardo boas recordações, mas não posso dizer o mesmo em nome dos demais da família, em especial meus tios e irmãs, porque a gente tinha que passar pelo vilarejo à caminho da roça com todos amontoados na traseira e a capota do jeep era visualmente cansada, surrada pelo desgaste do tempo. Mais parecia um arsenal de guerra indo à campo com foices e enxadas. A gente era do mato mas já sabia o que era passar uma vergonha naquele tempo: Quem tava de fora ficava sondando a gente passar e quem tava dentro se abaixava como podia para não ser visto. O chapéu, igualmente surrado, feito de palha ao estilo avaiano nos protegia bem contra o sol escaldante, mas nessas horas era uma bom aliado estratégico pra gente se esconder dos olhares curiosos. A gente passava "amoitado", como se dizia. Mas se bem que no domingo todo mundo ia à missa cheio de pompa uns com os outros, ostentando sabe-se lá o que naquela época, nem celular existia ainda. Apesar de tudo eu não tinha do que reclamar, afinal de contas eu andava bem satisfeito com meu calçado, com o slogan de "calce esta força", eu usava um kichute da alpargatas bastante modal para época. Não era grandes coisas, mas era o bastante para a minha alegria, dado que eu voltava loco de contente chutando pedras pelo caminho da igreja até em casa, e podia fazer isso há anos a fio que o tal do kichute não se acabava por nada nesse mundo. Teve seu ápice entre os anos de 1978 e 1985. Acho que o fato do cadarço ser bastante comprido podendo assim dar várias voltas na canela fazia toda a diferença. Há quem dirá o contrário, mas eu achava um máximo.
Falando em celular. Ligação naquele tempo era vanguarda de luxo. Só existia um mísero telefone na cidade para todos usarem. Era na casa do Sr. Bastiãozão. Pagava-se lá alguns réis de cruzeiro, e como era caro pra burro a gente tinha que aproveitar bem a ligação pois não sabia quando ia ter dinheiro novamente pra poder ligar outra hora, mesmo que não fosse nada de importante, entrar ou sair daquela cabine após uma longa ligação era quase sinônimo de poder e status. Tinha gente que saia da cabine até com o peito erguido, dava aquela ajustada no chapéu com a canhota, um solavanco na fivela pra erguer as calças e aí sim, como quem dizia "eu sou foda pra caralho". Depois da missa, então, formava-se de fila e o tempo de espera de um pra outro era uma angústia que só. Entre comadres e compadres, era aquele covercê pra tudo que lado. Na real, ninguém queria saber de fato como estava o outro e sim saber da vida do outro, fofocar por fofocar, mesmo. Geralmente, é num domingo desses que um casamento começa e outro termina do nada. Boato em cidade pequena é foda, chega no ouvido da patroa sempre com a disculpa de uma visita e termina numa cuia de chimarrão.
Eu já estava com nove anos, mas ja interpretava muito de política. Desde garoto eu desconfiava que o povo não votava nele por medo, mesmo. Nem por isso ele era ruim, eu tive sorte porque fui dentre os netos o primeiro em favorito. Grilo, era meu apelido. Eu não gostava, mas ele fazia questão. Por outro lado ele brincava bastante comigo e até me deixava escapulir da lavoura enquanto carpinava a roça; quando não deixava, e saia de fininho entre as parreiras de milho sem ser notado, em seguida sumuia na braquiára pra pescar o resto da tarde. Depois eu dava um jeito de me explicar com ele. Meus irmãos ficavam bolado. Eu também tinha conta fiado em qualquer venda da cidade, não sei porque mas nunca me recusaram. Na venda do seu Farias eu gastava com doces e algumas compras do mês; no Davi, era a minha sessão da tarde, comprava com ele de estilingue à acessórios de pesca; minha avó era quem fazia meu bodoque, uma bolsa à tiracolo costurada à mão, feito especialmente com as calças velhas do meu avô; noutra venda eu gastava com minha tubaina favorita. Meus parentes que não me deixam mentir.
Quanto aos jovens de Paraisópolis, eu bem disse: "Nunca vi alguém ser pisoteado em casa".