Santa ceia

Era noite de Natal e ele aguardava a chegada não do Papai Noel, mas do próprio Deus. Ou Jesus, ou o Espírito Santo – alguém da Trindade. Era um apartamento pequeno, mas, ajeitando-se bem, havia espaço para mais um. Ele havia orado durante toda a semana convidando Deus para a sua ceia de Natal. Não havia tido nenhum tipo de resposta, mas sabia que Deus iria aparecer. Deus não permitiria que um dos seus filhos passasse um Natal triste e isolado. A ceia, é verdade, seria extremamente simples, só um macarrão e uma saladinha, o máximo que ele sabia fazer, mas ele achava que até mesmo a modéstia da sua refeição seria vista com bons olhos lá do céu.

Colocou dois pratos sobre a mesa, o seu e o de Deus. Sentou e esperou. Deus estava demorando. É verdade que ele não sabia como Deus haveria de se manifestar. Talvez fosse um grande clarão, um ponto luminoso que iria aumentar de tamanho até tomar conta de todo o apartamento. Ou quem sabe fosse uma visão, o rosto de Jesus que, subitamente, iria aparecer sua frente, sorrindo com ternura. Sabia que coisas assim eram possíveis. Já ouvira muitos relatos e ele mesmo, durante seus momentos de devoção, chegou a ter algumas experiências místicas. Sentiu, por exemplo, uma presença envolvê-lo e aquecê-lo, e chegou mesmo a vislumbrar uma espécie de sombra que ia da esquerda para a direita. Para ele, não eram fenômenos ópticos: só podia ser o Espírito Santo. O Natal parecia ainda mais propício a esses eventos de transcendência. Ele aguardava a chegada de Deus.

Como nada ainda acontecesse, começou a se impacientar. Apagou a luz e foi orar, não sem antes esfregar os olhos, como a favorecer algum meio pelo qual o divino quisesse se manifestar. Orou e pediu a Deus que viesse, que tinha comida para ele, que ele não queria passar o Natal sozinho, não era justo, os outros todos tinham alguém com quem passar, até os que não acreditavam em deus nenhum, e ele não pedia nenhum presente material, não queria carro, não queria passar em concurso público, ele só queria que Deus viesse até a sua casa naquela noite, como é que Deus poderia recusar um pedido como esse? E já no final da oração ele chorava e tinha pena de si.

Voltou a se sentar e olhou para os pratos à sua frente. Lembrou-se de Jesus falando que ao fazermos algo pelos outros estamos fazendo por ele mesmo. E pensou que devia dar aquela comida para alguém, é possível que fosse assim que Deus se manifestasse. Pegou um prato de comida e saiu de casa disposto a achar um morador de rua. Não devia ser difícil, eles apareciam mesmo que não se estivesse procurando por eles. Naquela noite, no entanto, não conseguiu achar mendigo nenhum. Será possível que até eles estão passando essa noite acompanhados de alguém? Talvez uma ONG tenha levado todos para uma festa. Ele foi e voltou por alguns quarteirões, com o prato de comida na mão, até que decidiu voltar para o prédio – já se sentia arrasado. Ocorreu-lhe então que podia dar a refeição ao porteiro do prédio, que passaria a noite sozinho dentro de uma cabine. Teria feito isso, se o porteiro fosse um desconhecido, mas o porteiro o conhecia de vista e iria estranhar, o que é que esse sujeito que mal me cumprimenta pensa que está fazendo ao me dar um prato de comida? É possível que se ofendesse. Voltou para o seu quarto.

Comeu a ceia sozinho e deixou o resto para o almoço do dia seguinte. Estava deprimido e sentia um grande vazio dentro de si, um vazio diferente de tudo o que já havia sentido. Ligou a televisão, sem prestar muita atenção ao que passava. Já sabia que não iria acontecer nada. À meia-noite, começaram a soltar fogos na vizinhança. Eram cristãos querendo mostrar para todo mundo que eram cristãos. Virou para o lado na cama e dormiu – essa noite, sem orar.

milkau
Enviado por milkau em 03/12/2019
Reeditado em 03/12/2019
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