O dia que nunca acabou
Naquela manhã estiquei as pernas e me espreguicei na única réstia de sol que encontrei no espaço dedicado para nosso acampamento no amplo parque de Santa Cruz do Sul onde ocorria o Enart. Viajamos a noite inteira. Foi uma boa viagem, apesar de pegarmos chuva na estrada, o que aumentou consideravelmente nosso tempo até o destino.
Não levei mais do que vinte minutos para montar minha barraca iglu num dos cantos do espaço. Ainda ajudei na montagem da barraca que serviria de cozinha e área para cobrir as barracas pequenas, temendo a possibilidade de mais chuva. É engraçado, não lembro de um Enart sem chuvas. As vezes chovem muito, às vezes pouco, mas de todos os que fui, uma coisa foi certa, sempre choveu.
Naquele ano o Enart era especial para mim. Depois de muito tempo voltei a competir como declamador e ainda mais orgulhoso porque estava representado o CTG Darci Fagundes de Redentora, que tinha me acolhido tão bem naqueles últimos anos.
Eu tinha tudo planejado. O evento de arte e cultura gaúcha é tão grandioso que se você não se planejar perde muita coisa. Você para nas apresentações da força B e se esquece das apresentações da divisão especial. Para na área de alimentação para assistir uns dez minutos da trova e pajada e quando vê já passou meio-dia e você perdeu as eliminatórias do violão ou da chula. Eu adoro chula.
No ano anterior pude acompanhar uma das disputas mais extraordinárias da história da chula, na qual o Leonardo Bandeira de Ijuí havia saído vencedor. Em 2014 a competição prometia. Não perderia a chula por quase nada.
Logo depois de montado o acampamento já me movimentei junto com outros parceiros em direção ao palco de chula onde estavam ocorrendo as eliminatórias. Meu telefone tocou uns dez minutos depois que cheguei. Lembro de ter apertado no indicativo verde para atender a ligação, mesmo sendo de um número estranho, mas avistei a chegada do presidente do MTG Manuelito Savariz, e fui cumprimenta-lo e marcar uma entrevista para mais tarde, desligando antes de dizer alô.
Enquanto conversava com Savariz meu telefone tocou mais duas vezes. Dois números diferentes. Estranhei, mas recusei as ligações. Depois da conversa quando retornava para a arquibancada encontrei um amigo dos tempos de tradicionalismo em Ijuí. Mais alguns minutos de conversa e mais algumas ligações recusadas.
Quando estava prestes a subir na arquibancada fui chamado por alguém para ir até o caixa eletrônico. Nós caminhávamos entre o palco da chula e o caixa que ficava alguns metros na direção oposta. Lembro que a pessoa ao meu lado comentava alguma coisa sobre o fato de eu ter saído do acampamento sem dizer para onde iria, quando meu telefone tocou novamente.
Peguei o celular na mão e identifiquei que era uma chamada de minha mãe. Ouvi em meio aqueles ruídos de som e músicas, que vinham de todos os lados, o canto de um passarinho. Achei aquele momento sublime. Um passarinho destoando em meio aquele mundo de ruídos sem parar, que por vezes fazia doer a minha cabeça doer. Era encantador. Era como se o pequeno bichinho tentasse abafar aquela barulheira.
Demorei alguns minutos para atender, esperei um grupo que vinha na direção oposta passar. Eram jovens que vinham numa daquelas arruaças, clara demonstração de felicidade, falando alto e se estapeando em movimentos típicos de quem está naquela fase da passagem da infância para adolescência.
Quando atendi percebi na voz da minha mãe o pior dos desesperos possíveis. Ela disse apenas uma única frase para que eu pudesse entender o que estava acontecendo: “Aconteceu um acidente e o Juju morreu”; foi assim, sem muitos detalhes, direta como sempre, mas com a voz carregada de emoção como não poderia deixar de ser a voz de quem naquele momento anunciava que tinha perdido um de seus filhos.
Algo subiu de minhas entranhas em direção da minha garganta. Um vázio estranho se formou imediatamente em meu estômago. Senti o cheiro da terra molhada causado pela chuva que caiu naquela manhã, e minhas pernas fraquejaram ao ponto de eu não conseguir ficar em pé.
Mesmo eu, que não sou afeito a chorar ou sorrir por qualquer coisa, senti uma lágrima teimosa molhar meu rosto. Vi algumas pessoas passando e me encarando, com aquele ar de curiosidade absolutamente humana, mas meus olhos viam e meu cérebro não processava as imagens. Eram apenas figuras desconexas.
Cinco anos depois ainda lembro de todas as sensações. Às vezes quando, na solidão dos meus pensamentos, revivo aquela cena, ainda sinto aquele cheiro de terra molhada como se estivesse novamente lá. Ainda ouço nitidamente o passarinho cantar. É como se aquele dia 15 de novembro nunca tivesse acabado. Talvez ele nunca acabe.