Boa Vista à vista

Texto XXV

(Por Erick Bernardes)

Hoje começo a conversa com uma questão em particular: seria de pouca criatividade iniciar história reconhecendo ter sucumbido ao templo do comércio chamado shopping center? Bem, está claro que sim. Me rendi ao milkshake do fastfood capitalista da letra gigante. Reconheço. Mas juro ter extraído alguma poesia disso. Nem só de estética literária vive o escritor, mas também desse modus operandi do comércio desde muito naturalizado em mim. Vamos à história então, tendo como paisagem a bela visão de cima. Ali mesmo, junto ao mirante, no hall de entrada do Shopping São Gonçalo.

Estávamos relaxados e tranquilos tentando encontrar algum lugar onde pudéssemos nos sentar, tomarmos nosso milkshake de tamanho gigante - e depois só Deus sabe o que decidiríamos fazer. Na entrada mesma do shopping, de frente para a reluzente praia gonçalense. E foi daí que a Isabela seguiu a lógica dos sentidos, me mostrando veia cronística mais sensata do mundo: o óbvio.

— Pai, aqui se chama Boa Vista por causa da beleza desse mar iluminado, né? Vista maravilhosa daqui. Quase ninguém de fora da cidade conhece, aposto. Uma boa vista mesmo.

Pronto, nasceu a escritora. Temos uma futura cronista da cidade. Explicação primeira do desfecho histórico, pelo final se justifica o começo. Boa Vista se deu por causa do mirante no qual nos encontrávamos. Continuemos:

— Acertou, parabéns Isabela, a beleza da Guanabara do lado de cá foi o que serviu de motivo sensato de registro territorial. Boa Vista está para a referência de boniteza, assim como o milkshake está para a nossa supermodernidade. Tudo se afina em questões de explicação. Uma coisa puxa a outra.

Mas, continuei narrando a ela sobre minha época de moleque. Sim, passei bons tempos por ali, no lugar onde estávamos sorvendo nosso lanche. Mas isso foi há décadas, bem antes de haver lojas e estacionamentos. Chamavam o espaço na entrada da rua de "biquinha", devido ao ponto natural de abastecimento de água usado pelos moradores. Pois é, fonte aquífera natural de graça para o povo. Viu aí?

Outras situações que recordo também se devem ao antigo ônibus 42, de quando a cor do letreiro (vermelho ou verde) definia o destino do cidadão. "Só mesmo em São Gonçalo, meu Deus!", diria o senso comum. Porém, há de se reconhecer, quando o display do veículo capenga vinha na cor avermelhada, estava claro, o trajeto seria como flash, e em questão de minutos chegaríamos ao centro. Mas, acaso a coloração verde dominasse o mostrador do ônibus, ahhh, Deus do céu, o gira-mundo da Viação Estrela se iniciaria - e a eternidade se revelaria à nossa frente. Juro a você, caro leitor, demoraria uma hora ou mais, até o motorista já suado despejar sãos e salvos os sofridos passageiros lá no bairro Boa Vista. Contudo, podíamos escolher, embarcar ou não? Simples assim. Duas horas depois passaria outro transporte desses.

Pois é, tudo no Boa Vista ganhou status de globalização. Milkshake, lojas de importados, ah, o sinal do WiFi pega que é uma beleza! "E o ônibus, minha filha, deixou de demorar? Perceba quanto tempo esperamos no ponto. Estamos mesmo no caminho da ultramodernidade?"

— Só que não, papai. Só que não!

Fim.

Erick Bernardes
Enviado por Erick Bernardes em 01/12/2019
Código do texto: T6808056
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