Tédio municipal
Passou no rádio, agora há pouco, uma notícia dando conta de que, na Black Friday de ontem, uma loja varejista estava vendendo 24 rolos de papel higiênico por R$ 9,90; uma pechincha, dizia a reportagem. O resultado foi uma vendagem recorde de papel higiênico: 13 mil quilômetros vendidos, que, de acordo com a reportagem, são suficientes para ir de São Paulo até Sydney, na Austrália. Eu, que não nunca fui a São Paulo e menos ainda à Austrália, fiquei a imaginar a distância, tentando traduzi-la para meu sistema de medidas e desisti da soma. Desliguei o rádio e vim para a sala de não-estar, mas o calor não me permitiu assistir à programação sabática, que, dado o calor, ainda que pela manhã, está mais para ''saarática''. Larguei a sala e vim para a rua, que estava ausente. A rua não estava, apenas os carros, as pessoas em seus corpos emprestados e, imagina quem, isto mesmo: o calor, que me fez retroceder à sala de não-estar.
Ela, que me entende tão bem, sabe melhor que eu como o tédio municipal aumenta nesta época do ano, nesta época de Black Friday e início de dezembro. Aumenta juntamente com as notícias do mundo, as tristes e desoladoras, as que representam os operários, os vendedores de suor, os ambulantes urbanos. É para as bandas de dezembro, mais precisamente próximo ao dia 25 desse mês, que descobrimos que há no mundo e ao nosso redor pessoas que passam fome, que dormem nas calçadas, que morrem de calor. Descobrimos que o calor, tal qual o frio, mata de uma morte horrível e dolorosa, e, em nossa humanidade adormecida durante os onze meses precedentes, vemos o quanto o homem pode ser cruel e egoísta quanto a seus próprios interesses.
O habitante de dezembro que comumente desconhece os "irmãos" desfavorecidos durante os onze meses precedentes, em dezembro, acha-se em paz com Deus e com o Estado. Tira do bolso uma moeda a um mendigo, da despensa um alimento a um faminto, do rosto um sorriso a um mal-humorado domingo, e eis a salvação do habitante de dezembro. Não sabe ele que, agindo assim, está contribuindo para aumentar o tédio municipal.
O ano não é dezembro, apenas. Famintos, nus, raquíticos têm o ano todo para serem vistos e prestigiados; um ano de doze meses, agravado pelo Carnaval, pelo Dias dos Namorados, pela Independência da República, que nunca foi independente, pois sempre fomos matéria-prima dos EUA e seus interesses. Não compreendo como em um país como o nosso, em que faz calor do djabo quase o ano todo, adotamos uma data como o Natal, que tem um senhor exageradamente vestido, com casaco e tudo, representando o ''espiríto natalino''. Não compreendo como Deus, que dizem ser brasileiro, permite tudo isso. Não compreendo como ele permite toda essa farsa, principalmente em dezembro, época em que não só o dólar aumenta, mas sobretudo o tédio municipal.