O Rei do Manguzá
Tal rei andava, displicentemente, a pé, pela longa Rua Edson Ramalho; demonstrava-se despreocupado. É verdade que ele não tinha com que se preocupar, pois, a concorrência em fazer aquela iguaria, doce ou salgada, não lhe causava frisson ; tampouco tinha sido atingido pelas transformações ou pelo fim das profissões, como ocorreu com os amoladores de tesoura que, à porta das casas, tocavam uma gaita ou um realejo, oferecendo os seus serviços. Tinham de soprar até um apito, um instrumento qualquer, como até hoje fazem os vendedores de cavaco chinês, tocando triângulo para se distinguirem dos carteiros, hoje, também em fase de extinção... Dizem que muitas das profissões estarão desaparecendo, como aconteceu com os acendedores de lampião, desenhados no Pequeno Príncipe, de Saint Exupéry. Depois, vieram os postes com lâmpadas elétricas, acendidas por uma só chave; agora, nem isso, elas são acendidas pelo automatismo, basta escurecer e lá vem a luz.
Esse Rei do Manguzá é rei, isso ele assume; mas não se preocupa com o tempo, com problemas da sua época e também é indiferente, quase como os atuais reinantes de sangue azul, às demoradas soluções do seu meio ou do seu reinado. Sua preocupação é simples e de rotina: procurar um bom milho seco, inteiro e sem olhos, e colocá-lo, durante a noite, em água fria, para amolecê-lo. Câmara Cascudo, que o chama de mugunzá, no Dicionário do Folclore Brasileiro, ensina-nos uma receita: Coloca-se ao fogo o milho amolecido numa panela com água; quando ele se mostrar tenro, põe-se leite de coco ou leite de vaca, como era o preferido por Gilberto Freyre, em Açúcar (página 123, Rio de Janeiro, 1939). A gosto, acrescentam-se um pouco de sal e açúcar, cravo-da-índia e uns pedaços de pau-canela. Quando o caldo engrossar, tem-se uma comida gostosa afrodescendente, tal qual gastronomia se ofereceu, no Festival da Cultura Quilombola, ora realizado pelo Governo do Estado, em Caiana dos Crioulos, e ao lado de outras iguarias quilombolas.
Certa vez, em Paris, o professor da Sorbonne, sociólogo Joffre Dumazedier, consagrado teórico do lazer (loisir), perguntou-me o porquê dos textos brasileiros citarem tanto palavras com o termo “reino”, como farinha do reino, queijo do reino, pimenta do reino etc. Ri e expliquei: Por causa de vocês europeus que sempre tiveram reis, reinos e reinados; principalmente por causa dos colonizadores portugueses, que levaram, para o Brasil, o rei, seu reinado e suas comidas. Sendo que a pimenta do reino deveria, como é o cravo, ser chamada de “pimenta da Índia”. E assim, enraizou-se entre nós o latente desejo de ser rei, até alguns se proclamarem rei da carne de sol ou rainha da sucata. Por aqui, há realeza em tudo; é uma mania extravagante, verifique-se isso no “rei do futebol”, nos reis da fava, da feijoada e de tantas coisas mais. Sem preconceito, já conheci muitas rainhas: rainha da tapioca, rainha da canjica e cosí via. Eles e elas, costumeiramente, não se casam para expandirem o território dos seus reinados.
De toda forma, o Rei do Manguzá não está sozinho em usar essa analogia, aplicada também para o leão que, por ser o mais forte e o dominador da floresta, é chamado de rei da floresta, rei dos animais. Na sociedade dos homens, a luxúria é convidativa a quem ache na riqueza financeira o objetivo principal de vida ou de ser “feliz”; o sexo também é uma atração concupiscível. Mas também o poder desperta semelhante concupiscência. Se Zé do Milho cobiça esse “poder”, então ele o consegue aparentemente, ao se autodenominar de rei, embora seja do manguzá, como, no seu bairro, existem rei da bicicleta, da torneira, e também, a empreendedora rainha do bolo. Imagine, a classe média burguesa chama seus filhos ou netos de príncipe; e suas filhas ou netas, de princesa. O que simbolicamente significa futuros reis ou futuras rainhas...
Tal rei andava, displicentemente, a pé, pela longa Rua Edson Ramalho; demonstrava-se despreocupado. É verdade que ele não tinha com que se preocupar, pois, a concorrência em fazer aquela iguaria, doce ou salgada, não lhe causava frisson ; tampouco tinha sido atingido pelas transformações ou pelo fim das profissões, como ocorreu com os amoladores de tesoura que, à porta das casas, tocavam uma gaita ou um realejo, oferecendo os seus serviços. Tinham de soprar até um apito, um instrumento qualquer, como até hoje fazem os vendedores de cavaco chinês, tocando triângulo para se distinguirem dos carteiros, hoje, também em fase de extinção... Dizem que muitas das profissões estarão desaparecendo, como aconteceu com os acendedores de lampião, desenhados no Pequeno Príncipe, de Saint Exupéry. Depois, vieram os postes com lâmpadas elétricas, acendidas por uma só chave; agora, nem isso, elas são acendidas pelo automatismo, basta escurecer e lá vem a luz.
Esse Rei do Manguzá é rei, isso ele assume; mas não se preocupa com o tempo, com problemas da sua época e também é indiferente, quase como os atuais reinantes de sangue azul, às demoradas soluções do seu meio ou do seu reinado. Sua preocupação é simples e de rotina: procurar um bom milho seco, inteiro e sem olhos, e colocá-lo, durante a noite, em água fria, para amolecê-lo. Câmara Cascudo, que o chama de mugunzá, no Dicionário do Folclore Brasileiro, ensina-nos uma receita: Coloca-se ao fogo o milho amolecido numa panela com água; quando ele se mostrar tenro, põe-se leite de coco ou leite de vaca, como era o preferido por Gilberto Freyre, em Açúcar (página 123, Rio de Janeiro, 1939). A gosto, acrescentam-se um pouco de sal e açúcar, cravo-da-índia e uns pedaços de pau-canela. Quando o caldo engrossar, tem-se uma comida gostosa afrodescendente, tal qual gastronomia se ofereceu, no Festival da Cultura Quilombola, ora realizado pelo Governo do Estado, em Caiana dos Crioulos, e ao lado de outras iguarias quilombolas.
Certa vez, em Paris, o professor da Sorbonne, sociólogo Joffre Dumazedier, consagrado teórico do lazer (loisir), perguntou-me o porquê dos textos brasileiros citarem tanto palavras com o termo “reino”, como farinha do reino, queijo do reino, pimenta do reino etc. Ri e expliquei: Por causa de vocês europeus que sempre tiveram reis, reinos e reinados; principalmente por causa dos colonizadores portugueses, que levaram, para o Brasil, o rei, seu reinado e suas comidas. Sendo que a pimenta do reino deveria, como é o cravo, ser chamada de “pimenta da Índia”. E assim, enraizou-se entre nós o latente desejo de ser rei, até alguns se proclamarem rei da carne de sol ou rainha da sucata. Por aqui, há realeza em tudo; é uma mania extravagante, verifique-se isso no “rei do futebol”, nos reis da fava, da feijoada e de tantas coisas mais. Sem preconceito, já conheci muitas rainhas: rainha da tapioca, rainha da canjica e cosí via. Eles e elas, costumeiramente, não se casam para expandirem o território dos seus reinados.
De toda forma, o Rei do Manguzá não está sozinho em usar essa analogia, aplicada também para o leão que, por ser o mais forte e o dominador da floresta, é chamado de rei da floresta, rei dos animais. Na sociedade dos homens, a luxúria é convidativa a quem ache na riqueza financeira o objetivo principal de vida ou de ser “feliz”; o sexo também é uma atração concupiscível. Mas também o poder desperta semelhante concupiscência. Se Zé do Milho cobiça esse “poder”, então ele o consegue aparentemente, ao se autodenominar de rei, embora seja do manguzá, como, no seu bairro, existem rei da bicicleta, da torneira, e também, a empreendedora rainha do bolo. Imagine, a classe média burguesa chama seus filhos ou netos de príncipe; e suas filhas ou netas, de princesa. O que simbolicamente significa futuros reis ou futuras rainhas...