Delegado Nadir

Capítulo 13

Delegado Nadir

Não sei se ele era capitão, tenente ou sargento. Chamavam-no pelas três patentes. Capitão Nadir? Até pode ser. Sargento Nadir? Então. Um dos três ele era. Porém, o que realmente chamava a atenção era o nome em si: Nadir. À socapa, diziam ser um nome feminino. À furtadela. Devo também esclarecer que ele não impunha respeito pelo físico avantajado ou por andar ostensivamente armado. De jeito algum. Mas, vou ser sincero, sua pessoa terminou por impor um subido respeito a todos nós. Explico:

Ele chegou a Terra Boa, montado em uma atitude humilde. Voz baixa, sem aquele timbre autoritário que normalmente acompanha a voz policial. Estatura baixa, não vou exagerar detalhes para impressionar o leitor. Óculos de lente grossa, parecia mais um rábula do que um doutor delegado. Um detalhe chamou a atenção. Seu aperto de mão era muito firme, muito constritor, por assim dizer. Alguns, um e outro, isto eu mesmo vi, ficavam massageando a mão logo após um cumprimento dele. Mas, de boa. Foi trabalhando, foi trabalhando – saía em diligência. O Jeep dele passava, ganhando os carreadores, descendo sítios, antros e esconderijos (vamos dar um sabor de romance policial à narrativa). Valentões amansavam. Maridos bravos se acalmavam, ladrões contumazes começavam a trabalhar e devolviam produtos de furto – coisa corriqueira, creio eu, que acompanha a atividade policialesca.

A narrativa está bem trivial, e o que se pode dizer de notável é que os índices de criminalidade foram caindo aos poucos. E que alguns zombavam do nome dele, quando ele não estava perto. “Nadir – kkkkk- isto é nome de mulher”. Não sei se eu já disse que uma cidade interiorana, normalmente, pende mais para o machismo do que para estas modernidades transgenéricas (perdão pelo neologismo). Não vou estender o assunto, para não mudar o foco.

Zombavam dele, mas não explicitamente. O que eu mais ouvia falar pelos clientes da farmácia: o nível de criminalidade – ops, ainda não existia nível de criminalidade. Na verdade, eles diziam: “Cada vez tem menos crimes aqui em T. B. (Terra Boa, pus a sigla, para não ficar um texto repetitivo e evitar a prolixidade).

Um dia, belo dia de sol, na manhã ensolarada (evitei a prolixidade, vou abusar um pouco dos chavões), houve-se por bem descobrir o segredo da eficácia que acompanhava a ação profissional de nosso delegado. Vamos aos fatos. Bandido, digo, marginal, digo, transgressor da lei não tem medo de florzinha desenhada em jornal, nem de guarda-chuva, nem de advogado de porta de cadeia, nem de juizinho laxante, compulsoriamente fadado a soltá-los por “dá cá aquela palha”. Bandido tem medo de uma força igual ou superior à dele. Não deixará de delinquir a não ser que se lhe apresente uma força constritora da qual ele não possa escapar com um simples alvará, conseguido à revelia do conceito de justiça. Olho por olho, dente por dente, quebradura por quebradura, está no livro sagrado.

Havendo prometido ir aos fatos, divaguei. Vamos aos fatos: O Ditão Carroceiro. O Ditão era um abrutalhado. Impunha respeito, até certo ponto, medo, alguns asseveram; outros afirmam terror (pela força física excessiva). Chicote na mão, rabo de tatu, sempre pronto. Sofria seu cavalo, tratado com pouco pão (figura de linguagem) e muita pancada. Mesmo tratamento dos filhos Alexandre e Tibúrcio, dois meninos acanhados, quietos, pequenos; e da Anselma, sua querida, mas infelizmente maltratada esposa.

Noite de terror, aurora de esperança. Todos diziam que com o tenente Nadir, ele se consertava. Que nada. Melhorou as pancadas por um tempo, executando-as mais parcimoniosas, mas o hábito do cachimbo faz a boca torta, logo o Ditão voltou a ser simplesmente o Ditão, rabo de tatu na mão e nos lombos de quem se atravessasse.

Estou me prolongando, vou ser objetivo. Vou contar como aconteceu. O Sargento Nadir estava tomando cafezinho no bar. Copo de pinga, mas líquido preto, cafezinho. O Ditão estava com a pega, não tinha visto a autoridade. Parou na praça, desceu bufando. Chicoteou o cavalo, que era uma égua, na verdade: a Estrela. Chicoteou o filho Alexandre, o filho Tibúrcio. Ia chicotear a Anselma. Ela tinha vindo com os filhos lhe pedir dinheiro para comprar leite (“dinheiro para comprar leite” é um item para compor efeito dramático, mas ela tinha vindo pedir um dinheiro sim). De repente, não mais que de repente, ouve-se a voz do delegado: Ô, ôôôô. O Ditão estacou. Para nossa surpresa, ele paralisou, chicote no ar. O delegado atravessou a praça, muito calmo. Disse calmamente: “Dá o chicote”. Chicote de tantas vítimas passou da mão do Ditão para a mão do delegado, para nossa surpresa (vou terminar sendo repetitivo).

Porco quando baila adivinha chuva. Eu senti que vinha coisa. E aí, só quem viu acreditará no que vou contar, lap, lap lap. O Nadir bateu com o chicote no até então chicoteador. Não sou bom para contar detalhes, vou resumir: bateu muito. Detalhe que não posso deixar de contar mesmo não sendo bom para contar detalhes: batia em diversas partes do corpo, com força, e não poupou o rosto. Mais um detalhe: apesar de eu não ser bom em contar detalhes: o mais impressionante do episódio: o delegado dialogava com o carroceiro já macambúzio, já sorumbático.

– Dói, Ditão?

– Dói, doutor!

– Ditão, dói? (lap, lap, lap)

– Dói, sim senhor!

Se eu acrescentar um adjetivo (“Dói, cavalo vestido? ”), um substantivo (“Dói, doutor delegado!”) ou até um advérbio que seja (“Dói muito”), eu faltaria com a verdade. Foram esses os quatro únicos diálogos, foi esse o procedimento. Quanto durou? Eu era criança: durou a eternidade. O povo é dramático: durou duas horas. Mas, vamos definir ao nível de uma boa compreensão: durou bastante.

Eu vi tudo. Senti que a força das chicotadas era significativa. Percebi o ar pesado, parado. O sol causticante. Duas crianças e uma mulher, olhando a cena, transpassados por um sentimento de alívio. O povo boquiaberto. O animal vingado de anos de violência fortuita. O outro animal castigado por anos de violência gratuita.

Vento que venta cá venta lá. Pancada nos outros é bom, mas quando é em nós? Pau que dá em Chico dá em Francisco. Faça aos outros o que queres que te façam. O Ditão, nascido Benedito Antunes de Souza, nunca mais levantou sua mão pesada contra alguém. Virou, mudou, transformou. Estes os verbos usados pelo terraboenses para defini-lo. Restou comprovada a força do diálogo, da conversa, da diplomacia, da pedagogia, da psicologia e da homeopatia. Quando doer na pessoa como dói na vítima, acaba a graça de judiar dos outros (inclua-se aí judiar dos bichos). Ah, tenente Nadir! Era um polido, um educado, um diplomata.