O criado-mudo e o racismo. Ou: Lamentações de um besta-quadrada
Resigno-me a ouvir toda admoestação que porventura os abnegados progressistas, os únicos seres dotados de sabedoria, bom-senso e hombridade, queiram me disparar, chamando-me a atenção para a minha ignorância injustificada acerca da origem do nome de um móvel caseiro, o criado-mudo, que tenho, há décadas, em minha posse. Eu soube, há dois dias, que um dono de loja de móveis, conscientizado por ilustres progressistas, que se dedicam à ingente tarefa de erigir uma civilização justa, sem desigualdade, a cada indivíduo o Estado entregando o que lhe é de sua necessidade, não mais irá denominar criado-mudo o móvel que se costuma dispor à cabeceira da cama, pois tal nome remonta o período, de triste memória, da época do império, quando reinava sem obstáculos a escravatura. Passará a nomeá-lo mesinha, ou mesinha-de-cabeceira, ou outro nome qualquer, nome que a ninguém inspire a evocação de período tão negro da história brasileira. Corrijo-me: não era negro o período histórico aludido: era tenebroso. Sei, hoje, que, inocente, e ingenuamente, desrespeitei, todas as vezes que me referi à mesinha à cabeceira da cama como criado-mudo, os ancestrais dos brasileiros hodiernos, os negros, arrancados, estes, à força, da África, sua terra-mãe, que os nutria com seus peitos apojados de pureza de alma, sabedoria e energia inexaurível, pelos sórdidos lusitanos, que os transportaram, através do Oceano Atlântico, em navios imundos, e os despejaram nas terras que eles iriam adubar com o sangue. É vocábulo avoengo criado-mudo, de uma era que tenho de repudiar, imersa em trevas. De um idioma vetusto, de valetudinários, de um povo soez. Assim que me chegou ao conhecimento a sua origem bastarda, espúria, adoeci de uma infecção psicossomática, que me pôs acamado. É enfermiça a minha compleição. Convalescer-me-ei ao extirpar de minha alma a culpa pela crueldade que eu, sem o saber, promovi, e o mal que, involuntária, e inconscientemente, causei aos povos que brotaram das terras africanas. Meus atos, no entanto, são indesculpáveis, pois eu tinha o dever moral de me informar acerca da origem das palavras que emprego em minhas falas. Entendo, hoje, que o sofrimento do povo que teve cortado o seu cordão umbilical com a geratriz africana é um epifenômeno da época em que os homens de ébano eram vergalhados nos pelourinhos. Não mais, prometo, empregarei, para me referir ao móvel que jaz imóvel à cabeceira da cama como criado-mudo, tão malfadado substantivo. Não mais. Não mais incorrerei em tal desfaçatez. Não mais persistirei no uso de vocábulo tão desrespeitoso aos negros. Não mais.