Deserto

Depois de longos vinte e dois anos caminhando por este deserto finalmente avisto a cordilheira que marca seu fim. Ando um pouco mais depressa, mas só um pouco. No deserto aprendi que se você caminha rápido demais pode não ter força para ir muito longe. O sol terrível castiga meu corpo. As pernas tremem. O vento forte alivia um pouco o calor e apaga a minha trilha de pegadas, mas atrapalha minha visão. A vida no deserto é o pior tipo de vida para alguém como eu. Ah, quem me dera ser abatido pela neve, afogado pelos rios, açoitado pela chuva! Mas não, sou obrigado a suportar o mesmo cenário por dias e dias: calor, sol, areia e vento de dia; frio, areia e mais vento de noite.

Talvez isso seja um exagero. O deserto não é essa monotonia toda, pois há alguma diversidade nos sofrimentos que ele nos infringe. Por exemplo, o deserto não é reto, está cheio de montanhas e vales. O chão não é apenas areia, mas às vezes há pedras escaldantes e covas perigosas. Talvez seja melhor assim. A vida seria pior se não variasse, pelo menos um pouco, nas maneiras como nos aflige.

O mais insuportavel é a espera. Aquela cordilheira que agora se aproxima foi ansiada, crida e descrida, por muito tempo. Uma facada rápida e certeira é suportada mais facilmente, mas quando o sofrimento se arrasta, quando a lâmina penetra na nossa carne lentamente, milímetro por milímetro, e a cada dia continua presente, com a mesma maçante rotina de irremediável agonia, o afligido perde a força, porque a esperança adiada desfalece o coração.

O deserto nos ensina especialmente que a verdadeira paciência é ativa. Ela não é um estar deitado esperando que as coisas mudem. Se você ficar parado no deserto morre cabornizado, ou de sede, ou comido pelas feras, ou por qualquer outra dos terríveis métodos que a Providência tem para destruir os fracos. Não, a verdadeira paciência trabalha debaixo da dor; corre carregando o fardo; tem uma profunda angústia no espírito e ainda continua marchando.

A Providência não nos deixa para sempre em aflição, é verdade. Há momentos de pausa, bálsamos de alegria, oásis que nos dão força para continuar na caminhada. Ela não quer nos matar de uma vez. Ela despedaça, mas nos sara; fere, mas depois ata a ferida, para prepara-nos para a próxima aflição.

Sou uma vítima? De modo algum. Por isso minha infelicidade. Se meu sofrimento fosse imerecido, se eu não fosse um homem mau em um protótipo do inferno, quiçá me alegrasse com a auto-comiseração. Foi dito que um homem mau, mas feliz, é um alguém sem a mínima noção de que seus atos não correspondem à realidade, e que não estão de acordo com as leis da Providência. Eu, ao contrário, sei que mereço o deserto. Por isso não posso me apegar a consolações falsas. A única esperança que tenho é que a Providência seja misericordiosa e me permita chegar àquela cordilheira que marca o fim do meu Calvário.

A solidão tem sua parte boa, é verdade. A alma se desenvolve mais vigorosamente quando estamos a sós do que em grupo. Alguns homens acham que precisam estar sempre marchando em alegria e grandes experiências maravilhosas para se tornarem grandes, mas não é assim que a Providência geralmente trabalha. É a vida diária, passo após passo, rumo à esperança, que torna grandes os homens.

Chego finalmente à cordilheira que tanto ansiava. Minhas forças se renovam. Não mais marcho cuidadoso pela areia quente, mas subo as grandes pedras, escalo com vigor, alegrando-me antecipadamente com respirar um novo ar, avistar outras colinas, ver o mar. Olho para trás uma última vez e vejo o infindável deserto pelo qual passei. Até aqui a Providência me trouxe. É o momento de seguir adiante, confiado que Ela vai me sustentar por novos perigos, tentações e lutas. Alcanço, aliviado, o topo da montanha e olho adiante, perplexo com o que a Providência reservou para mim. Lá está o mar que eu tanto imaginava. Mas, - vejam só! - é um mar de areia.

"Cruzei por inteiro um vasto deserto

De ponta a ponta, sozinho, em silêncio

E do outro lado do mar de areia

Vi outro deserto pra minha surpresa

Eu sei que é possível vivermos sozinhos

Cercado de gente e de conhecidos

Perdidos nas rotas de nossas rotinas

Sem nunca sabermos qual é o destino

Sem nunca sabermos nem rumo ou destino"

(...)

*****

Texto que publiquei em 2016 que descrevia meu estado psicológico à época.