Gostaria de saber como começar essa crônica, mas nem sempre isso me é possível, principalmente quando a realidade fica um tanto confusa.
Falo de ontém, de enfiar a cabeça no serviço, de levar o corpo ao limite, só pra tentar esquecer um pouco que tenho alma e coração - e falando francamente, nunca entendi ao certo essa divisa, se sempre operaram juntos em perfeita comunhão, ou melhor dizendo, nem tão perfeita assim.


E hoje, ambos ignorados por mim, decidiram que era hora de se rebelar e tomar as rédeas dos meus passos (que não estavam indo a lugar nenhum mesmo) e me cegar de tal forma que quando dei por mim, já estava na Borges de Medeiros com a Rua dos Andradas, em Porto Alegre.

Não, não sei como fui parar lá, não me lembro do trajeto, do trânsito ou da hora, mas já que estava lá, decidi caminhar.

Logo à frente, dois senhores sentados na Praça da Alfândega, um deles usando suspensório e o outro chapéu panamá, me sorriam como se soubessem onde eu estava indo. Como eu mesma não sabia, quase pedi para que me informassem.

À volta, começavam a brotar as cafeterias da Rua da Praia e obras expostas em cavaletes de um artista, desses que desenham retratos. Passei os olhos rapidamente pelas artes, como que buscando um rosto conhecido, mas o que me chamou atenção foi o lume violento que escapava irrefletidamente dos seus olhos ao reproduzir o retrato de uma mulher. Parecia a conhecer. E talvez a conhecesse, ao menos foi o que transpareceu ao contornar os lábios dela em longo suspiro.

A Rua dos Andradas não estava para almas rasas. Ela inteira luzia a tempos passados.

Senti os passos ficarem cada vez mais pesados à medida que fui me aprofundando à essência da paisagem. Nunca Porto Alegre me doeu tanto !

Segui mais adiante, até que senti minha alma enraizar em frente a um hotel.
Agora sabia onde alma e coração estavam me levando.
O porteiro já me esperava com um sorriso, como quem diz - pode subir, ele está te esperando.
Não quis subir de elevador, preferi as escadas, o dia não estava para modernidades.

Segundo andar, abri a porta do quarto e ela se fechou lentamente atrás de mim.
Tudo estava como da última vez - À parede, Chaplin me olhava com a mesma complacência de sempre. Sobre a escrivaninha, o livro ao topo de todos os outros, Teu Amor e as Estrelas, me fazia sangrar por dentro, como das outras vezes. Mas foi o suéter cinza claro acomodado à poltrona, que me levou definitivamente às lágrimas.


Sentei na cadeira ao lado, peito fervilhando e aquele conhecido nó na garganta, levei a mão sobre o braço da poltrona e o apertei com força, como se quisesse lhe apertar sua mão. Então pude ouví-lo dizer - tudo bem, eu entendo porque está aqui...

Nada, porém, consegui dizer. Algo havia me arrancado a voz, talvez alguém, talvez eu mesma ou a própria vida.
Tentei não incomodá-lo com minhas aflições e apenas me deixei inundar por suas palavras. — Ainda assim, algumas verdades continuam sendo duras mesmo quando ditas por lábios macios.
 
Saí do Majestic sabendo que precisava seguir a caminhada. Então desci a Rua da Praia em direção à Usina do Gasômetro.

O pôr do sol tingia o céu de tons alaranjados e rosados sobre o Guaíba. Sempre um espetáculo à parte, mesmo aos olhos mais distraídos.

Uma embarcação anunciava a saída e sem pensar muito, embarquei nela.
Acho que não queria ir a lugar algum, apenas digerir tudo o que estava se passando e o que havia absorvido entre as quatro paredes daquele quarto de hotel.

A embarcação contornou algumas das ilhas do Guaíba, retornou ao porto e eu segui em peregrinação, tentando entender o eu e os "nós", que deixamos pra depois, em cantos vazios, enquanto erguemos muros tão absurdamente imensos como os nossos silêncios e não aproveitamos nossas insônias tão poéticas, pra construir pontes.

Eu adoraria dizer que do fim de semana pra cá fiz coisas incríveis, que passei horas tocando violão e cantando com os amigos, ou que ajudei dona Odiles com os projetos sociais, ou que mergulhei de cabeça na natureza, ou que fiz brigadeiro de colher enquanto ouvia aquele mantra que me ensinou a gostar e que vou levar pra vida toda, e não aquela música que não para de martelar na minha cabeça, e que me faz chorar de tanta saudade de ti, mas ahhh !, às vezes sou tão humana que dói viu !







 
DENISE MATOS
Enviado por DENISE MATOS em 25/11/2019
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