Discrasia

— Então Hank, até consegui lançar o videoclipe no Youtube, mas a Polydor embaçou dizendo que a gente usou a base dos Tincoãs mais do que seis segundos não vamos poder monetizar os likes, a propriedade intelectual é deles.

— Pode crer. Diz o DJ que participou da obra enquanto eu observo através das minhas lentes para miopia molhadas pela garoa e da fumaça do cigarro de palha.

Volto ao salão que um dia serviu de esconderijo para intelectuais revolucionários na nossa última ditadura militar. É dia de festa. Comemora-se o fato de estar vivo e ainda poder dizer o que se pensa. Antes do fim do baile, volto para meu velho quarto de pensão a pé esfriando meus pensamentos com a chuva fina que, ainda bem, demora a passar.

Plac plac faz a sola de borracha do tênis sobre as poças das calçadas malcuidadas do caminho. Um cadáver de cachorro é arrastado pela correnteza do ribeirão poluído que serviu de guia para a avenida infestada de carros. Um homem tenta fisgar uma mistura para a janta de sábado com uma vara de pesca profissional. Se esses os peixes que existem lá conseguem sobreviver em meio à podridão, provavelmente não são adequados ao consumo humano, imagino. Guardo minha opinião para mim.

Foi um dia razoável. Gosto de dias razoáveis. Eles costumam vir após dias ruins e, ocasionalmente, precedem dias bons. Provavelmente é só outra divagação minha sem ligação nenhuma com a realidade posta. Mas na minha cabeça faz sentido, e no final das contas o que vale é o que acreditamos. Chego à porta de aço da construção e desarmo as engrenagens do segredo enferrujado com a minha cópia da chave. Subo as escadas já ouvindo o casal vizinho que faz arruaça na cozinha comunitária fingindo que são felizes. Atores sem público.

Converso um pouco com meu gato preto enquanto sirvo sua ração num prato plástico. Ele mia e quase acredito que gosta de mim. Ligo o computador e, algum tempo depois, o som padrão do Windows me arranca um sorriso, pois sei que não terei de escrever à mão. Minha caligrafia é feia e manuscritos cansam meu braço direito. Abro o arquivo da autobiografia póstuma e decido que ainda é cedo para publica-la. Há verdades escabrosas demais e julgo que o público não está pronto para elas.

Redijo uma crônica política que no final fica tão piegas que... Nem merece o esforço.

Rodrigo Margini
Enviado por Rodrigo Margini em 23/11/2019
Código do texto: T6802182
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