Morte do servente de pedreiro

É com pesar que a esposa, os doze filhos e os poucos amigos do servente de pedreiro da rua das Amarguras — dentre os quais um padeiro e um vendedor de confeitos — comunicam à sociedade em geral o falecimento desse pai de família e profissional dedicado. Em vida, analfabeto e anônimo, não lhe foi dado motivo de júbilo, de receber os cumprimentos pelos excelentes serviços prestados à sociedade e ao progresso. Agora que morreu, pelo menos, que tenha sua nota de pesar estampada, senão na grande mídia, no Jornal Nacional, ao menos na parede de algum prédio que ajudou a levantar. Que o proprietário do edifício XYZ tome nota da morte do servente de pedreiro da rua das Amarguras, o qual ajudou a fazer do edifício XYZ um dos mais bonitos da cidade.

O morto manda avisar que não precisa de Autópsia para descobrirem sua causa morte. Esta já é de conhecimento geral: morreu trabalhando, como a maioria dos mortos anônimos, vítima de um tijolo perdido que o achou na parte frontal da cabeça. Foi morte instantânea, uma fatalidade fatal e indolor, acredita. Dispensem os ocupadíssimos peritos médicos e a polícia, tampouco culpem o efeito gravitacional e a Ciência pela fatalidade. A causa mortis já é sabida, mas não a causa vida. O servente de pedreiro da rua das Amarguras desconhece o motivo de vida que o levou a passar mais de cinco décadas levantando e derrubando paredes, sendo que nenhuma delas o acompanhou.

Agora, morto e com tempo suficiente para gastar, deu para perguntar-se como suportou tanto tempo servindo de mão de obra para um mundo do qual nunca fez parte. Morou quase toda vida em barraca de lona, embaixo de ponte, longe das casas e prédios que ajudou a construir. Pintou paredes nas quais nunca encostou o peso do corpo ou sentiu, depois de pronta, a presença de sua arte. Agora o servente de pedreiro da rua das Amarguras caiu na real: o mundo que ele ajudou a erguer nunca o quis senão como servente de pedreiro. Morreu analfabeto e feliz, vítima de uma fatalidade fatal e talvez nem tenha missa de sétimo dia e nota de pesar afixada nos prédios que levantou. Morreu analfabeto e feliz, mas agora está arrependido.

Deveria ter se alfabetizado, pelo menos saberia escrever seu nome próprio, declarar seu amor por escrito à esposa, escrever sua palavra preferida no mundo — que, aliás, essa palavra é "vida". Escreveria sua carta de demissão ao mundo de cimento armado, com cópia para o pároco da Igreja que frequentava, a quem deveria comunicar a seu Superior os motivos pelos quais o mundo perdeu um exímio servente de pedreiro. Seria possivelmente mais um desempregado no mundo, mas um desempregado alfabetizado e infeliz. Acredita que, se os demais serventes de pedreiro que compõem a classe, analfabetos e felizes, renunciassem ao analfabetismo e à felicidade, talvez menos serventes de pedreiro perderiam a vida vítimas de tijolos perdidos. Talvez o servente de pedreiro da rua das Amarguras esteja vivo, motivo pelo qual sua esposa, seus doze filhos e os poucos amigos do servente de pedreiro da rua das Amarguras — dentre os quais um padeiro e um vendedor de confeitos — pedem que a sociedade em geral e o progresso desconsiderem esta nota de pesar e continuem com sua programação normal.

Atenciosamente,

Servente de pedreiro da rua das Amarguras.

Damião Caetano da Silva
Enviado por Damião Caetano da Silva em 23/11/2019
Reeditado em 23/11/2019
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