O Barbeiro que Falava Demais

Capítulo 10

O Barbeiro que Falava Demais

Ele tornou-se famoso e ganhou um apelido: Fulgêncio, o desbocado. Quer dizer: o Barbeiro. Todos o chamavam assim. “Ô, Barbeiro, vem cá”. “Ô Barbeiro, você vai lá?” E por aí, ia. Fulgêncio, só em casa. Fulgêncio, o desbocado, só se ele não estivesse ouvindo. Uma seda de pessoa. Um bondoso. Humilde. Recatado, em seu ofício humilde. Falava baixo, falava ritmado, sem alterar o tom da voz. Não era corpulento, não era excessivamente ativo, nem muito atlético, quero dizer.

Boa freguesia. Vida modesta, casa modesta, esposa modesta: a Modesta. Filhos tranquilos. Filhos de barbeiro.

Até que o Terra Boa jogava. Bom, aí ele se transformava: soltava foguetes ao time entrar em campo, até o céu ficar branco de fumaça. Brigava com a torcida visitante, fazia discursos inflamados a favor da vitória, xingava os próprios jogadores do nosso time. Um apaixonado pelo futebol.

Mas, infelizmente não era chamado de Fulgêncio, o desbocado, exatamente por causa disso. Era pior.

Em dias de chuva, chuva não, tempestade, ele assumia uma atitude até certo ponto estranhíssima. Ele se deslocava de debaixo da carroceria de um caminhão, onde todos procuraram refúgio, contra raios, trovões e grossos pingos da chuva – para o campo aberto. Ria e dançava. E... provocava Deus. “Criador, mira um raio aqui no meu coração. Se o senhor existe, me fulmina agora”. Há, há, há. “Deus, eu não tenho medo de Ti. Manda uma árvore me cair em cima. Manda esta árvore que eu estou abrigado, me cair em cima. Manda um raio nela, ou ni mim (sic), me mata agora. Eu quero ver.” Todos, espavoridos, saíam correndo, apavorados. “Livra-nos, Deus. Livra-nos, Pai.” “Tenha misericórdia”. Ele ria.

Por um bom tempo, minha noção não era bem exata na época, era assim que agia, era assim que fazia. Então, começaram as transformações que ficaram famosas na cidade nortista do Paraná. Ele foi se afastando das pessoas, tornou-se bravo e irascível. Maltratava a Modesta, sua esposa e por várias ocasiões, demonstrava um sentimentalismo exacerbado e fora de lugar. Um dia, abraçou um burro. Ficou um bom tempo conversando com o animal e dando-lhe conselhos, por vezes regados com algumas lágrimas. Com um galho de árvore na mão, ameaçou o proprietário legítimo de um coleirinho. Soltou-o à revelia. A confusão se estabeleceu. Veio até polícia. Alguns antigos amigos conseguiram que ele não apanhasse do dono do passarinho. Andava com uma caixa de sapatos na mão, como se dentro dela houvesse um tesouro precioso. Nunca alguém conseguiu ver o que tinha dentro. Uma ocasião, foi descalço para uma consulta com um médico. Desandou.

Nunca o Fulgêncio arredou pé desta infelicidade de comportamento. Minto. Um dia, passava eu com meu pai em frente ao salão do barbeiro. Um Jeep 4 portas (táxi) estacionou em frente. E eu vi um espectro, uma assombração viva, saindo cabisbaixo, derrotado, magro e esquálido de dentro do salão. Não o reconheci. Fiquei com aquela imagem assustadora em minha mente. Meu pai esclareceu para o Chico Pato: “É o Fulgêncio. Ele tanto desafiou a Deus. Todos lhe aconselhavam parar. Não parou. Está com um câncer em último grau. Vai indo de táxi para Maringá”.

Nunca mais eu o vi. Nunca mais o esqueci. Aquele homem tão efusivo certas ocasiões, ali vencido pela mais dolorosa das doenças. Ainda assim, não chego a crer que Deus o castigou. Creio que ele teve uma doença, como qualquer ser humano pode ter uma doença. Porém, creio que na hora que ele mais precisou de Deus, lhe pesou o fato de anteriormente ele ter andado maltratando o Pai do céu. Isso não se faz.