Já me aconteceu na vida de voar em outras asas antes que as minhas saltassem.

Minha mãe era dessas versões antigas de mulheres que precisavam de pouco pra viver, e ainda se achava a mais afortunada se a atmosfera à volta fosse a natureza mais bruta. E foi através desse prisma que me criei.

Minha mãe adorava acampar nas férias de verão e pra isso escolhia lugares retirados. Um dia conheceu um balneário, no município de Taquara, lugar esse que passou a ser nosso refúgio.

Nada ela avisava com antecedência. Quando decidia se ausentar do mundo era de uma hora pra outra, assim como de uma hora pra outra ela arrumava o que precisava, tudo muito rapidamente, como se se multiplicassem as mãos. Era uma mulher simples e prática. E ao final dizia -  Filha coloca tudo o que precisa em uma mochila.

Estranho como aquelas palavras me soavam assustadoras. Queria levar tudo o que via, se pudesse levaria até os amigos dentro da pequena mochila.
Com o tempo, levar apenas o necessário se tornou algo muito natural.
Olhando agora pra trás, vejo quão preciosa foi a lição que minha mãe deixou, de levar pela vida afora apenas o que se precisa e se pode carregar.

Então ela pegava a minha mão, tão pequenina perante a dela, e me conduzia ao nosso retiro.
Existia ali um estado quase místico, de um ser absurdamente grandioso que estendia suas asas hiperbólicas da mais casta proteção.

E lá íamos para o nosso canto isolado do mundo, que de tão inexplorado encantava.

Havia nele o encontro de dois rios. À orla do Rio Santa Maria, uma descida íngreme, fechada em vegetação. Um rio muito extenso e extremamente profundo. Já à orla do Rio dos Sinos, uma clareira favorecia o acesso às águas abastecidas de pedras ao fundo.
Diziam os mais velhos - Atravessar é difícil. A correnteza é forte. Do outro lado não dá pé !

Apesar de tudo o que ouvia, foi nesse rio que aprendi a nadar.
Mas havia outra coisa que também me interessava no rio - as pedras. Arredondadas, polidas pelo ritmo das correntes. Gostava do som que faziam quando batidas umas contra as outras sob a água. Então no meu ímpeto de criança, tomava impulso e mergulhava até o fundo, me ajoelhava junto às pedras e lá permanecia o tempo do fôlego.
Ali me sentia tocada por toda a vida.

Gostava mesmo era do fundo do rio. Havia afinidades entre nós - a linguagem como cântico antigo, a carência de garantias e mesmo o conforto inexplicável, me perfaziam intimamente.
— Ouso dizer que a poesia ininterrupta dos movimentos se amalgamava às minhas já irrefutáveis mutações.

 
Ainda hoje, quando as imperfeições se realizam, e se faz improvável o discurso e/ou a promessa, burlo as regras do jogo, atrevo-me à irrealidade submersa, e, em silêncio, afundo-me inteira no idioma das águas .







 
DENISE MATOS
Enviado por DENISE MATOS em 22/11/2019
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