ESTRANHO SABOR

Lembranças, momentos alegres e tristes, descobertas físicas e emocionais. A vida infantil pode ser encantadora e hostil. Não vale a pena idealizar nenhuma estação do corpo. O que me doeu foi a perda dos mais velhos da família aqueles que sabiam amar e que me ensinaram sobre a vida. Quanta saudade!

Vêm sempre na minha memória umas fotos antigas com imagens dos casarões, as entradas e saídas destas casas amplas, que ora me encantavam ora me ameaçavam. Do lado da família de papai o casarão era alegre e solar. Tinha um enorme pomar, um galinheiro, jardim e muitas parreiras. Desde cedo pude apreciar no pé as uvas amadurecidas e colhê-las. Que delícia! E, os pés de jabuticaba nem se fala. No porão desta casa havia muitas bolinhas e pós-brancos espalhados pelo chão. Eram remédios de homeopatia que íamos colecionando e colocando na boca, pois eram doces como balas. Depois de ler Peter Pan- aquelas bolinhas e pozinhos esmagados pelos sapatos-- era o pó de pirlipimpim. As fantasias que vinham à cabeça fuçando os objetos e livros nas prateleiras, correndo naqueles espaços enormes que davam sempre para o quintal o espaço preferido das brincadeiras. A casa ficava na rua do comércio da cidadezinha e tinha à frente várias janelas e portas. Num dos cantos o armarinho e papelaria e, no outro lado a porta para o jardim e varanda que dava acesso ao casarão.

Na chácara da família de mamãe tínhamos de andar três quilômetros até chegar por lá, margeando o rio e enfrentando as boiadas na única estrada de terra. Tudo na chácara era sombrio e fantasmagórico. Ali viveu uma família numerosa de pai, mãe e cerca de quinze filhos, alguns se casaram e outros permaneceram no local, tios e tias solteirões. Todos circunspectos, tristonhos e até esquisitos. Um espaço de vários quartos quase todos fechados e, quando abertos viam-se os móveis cobertos por lençóis. No salão principal deixavam outros lençóis cobrirem quase tudo. A sensação era de abandono e os sobreviventes por lá andavam como se estivessem todos mortos. As lembranças que povoam a mente sobre esta chácara são tenebrosas, mórbidas. Na parte da frente do imóvel ficava um armazém de secos e molhados, como se dizia à época, e ao lado da estrada ocupando o quarteirão sentia-se o viço da terra cultivada e das frutas no pomar. Este terreno fazia um contraste enorme com o interior do casarão; lá no fundo o rio com seu fiapo de água cristalina, livre da poluição.

Estes espaços faziam o contraponto entre a cidade e seus arredores. Só que na cidade também tinha casarios cheios de quintais, com o mesmo rio percorrendo os fundos das casas que davam para a mata, ainda bem pouco devastada, onde se faziam passeios, piqueniques, banhos de cachoeiras. Sempre andando com alho nas mãos para evitar o ataque de cobras. Nesses lugares firmei a infância nas reinações com irmãos, primos e amigos. Quase todos do sexo masculino, o que para mim foi vantajoso, pois não me ocupava das disputas da” turma da Mônica com a turma do Cebolinha”. Gostava de brincar de bonecas, mas preferia correr os quintais com o bando de meninos para roubar frutas dos vizinhos, e subir em árvores. Nem minha mãe e nem meus parentes colocavam restrições a brincar com os meninos.

Em minha família -- as mulheres trabalhavam fora como professoras ou secretárias. Minha mãe apesar de austera, pouco afetiva e mandona era uma guerreira, pois viúva muito cedo, com três filhos pequenos deu conta do riscado. Apesar da moral rígida, os adultos trabalhavam e não tinham tempo de ficar controlando os filhos. Uma boa recordação ter tido a oportunidade de ficar longe dos adultos – daí as brincadeiras fora dos padrões de criação diferenciada entre sexos. Jogava bola com os meninos--futebol e queimada, corríamos pelos quintais alheios com a adrenalina a mil e, conversava com um querido tio-avô que nos ensinava sobre a vida. Assistíamos com ele às novelas e notícias no rádio. Recordo das “tertúlias musicais” com sanfona ou flauta e canto coletivo unindo as vozes dos mais velhos aos jovens.

Esta convivência fraterna entre gerações em uma família ampliada permitiu que não me transformasse em “mulherzinha” vista pelo senso comum como fofoqueira ou que não é digna de respeito. Fui criada como no romance da escritora americana Louise May Alcott - Mulherzinhas, as meninas que entram na adolescência e aprendem que a mulher para ter uma vida plena deve buscar sua independência financeira.

Menina gostar de bonecas era parte da educação infantil que perdura até hoje, como um valor, condicionando a mulher ao seu futuro costumeiro de casar, reproduzir e cuidar dos filhos. Confesso que os livros sempre me entusiasmaram mais que qualquer brinquedo. Tive boa orientação para leituras infantis mergulhando entre outros, em Monteiro Lobato, os Contos dos Irmãos Grimm ou as Mil e Uma Noites. E, todos os gibis que ampliavam as fantasias das crianças. Além disso, tinha a maravilhosa máquina tecnológica – o cinema – com os seriados de Flash Gordon, os filmes de Chaplin e as aventuras de Tarzan que me fez apaixonar pelo continente africano, lendo todos os livros da série de Edgar Rice Burroughs.

Tempos agradáveis quando se podia fugir dos conflitos familiares e das doenças dos parentes adultos. Mas só quero falar dos momentos alegres embora o sofrimento amadureça e ensine sobre o embate entre a vida e a morte. O mundo de hoje é repleto de contradições e, aparentemente mais perigoso que a infância passada em uma cidade do interior. Ainda bem que tive sorte ao poder desfrutar de ambientes menos vigiados que o das crianças que nasceram no século XXI. O mundo misterioso e mágico do passado onde meninos e meninas só tinham influência do rádio e do cinema e, o mundo de agora onde vivem cercados por todo tipo de engenhoca high tec..

Mas o que dizer das crianças pobres que sempre foram cercadas da violência e da morte por todos os lados, tanto no campo como na cidade?Encurraladas pelo medo do assédio do tráfico e das milícias não estão nunca tranquilas nem em casa e nem na escola. Acabaram as brincadeiras sem risco. Todos, adultos, velhos e crianças estão mais pobres de espírito – carentes de afeto e de um mundo mais igualitário, acuados pela desesperança e pela redução do potencial de luta coletiva.

ISABELA BANDERAS
Enviado por ISABELA BANDERAS em 21/11/2019
Código do texto: T6800604
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