Hoje é?
Bem, essa é uma pergunta difícil de ser respondida e, dependendo a quem se dirige, pode capotar em uma dessas curvas criadas por obscurantismo em voga não vogal, deixando no ar partículas de sarcasmo incompreendido ou de notória burrice proposital. Se perguntarmos ao deputado Coronel Tadeu (PSL-SP), que ontem quebrou um quadro que aludia ao genocídio da população negra, dirá que hoje é dia de intolerância, que, no Brasil, não há essa de racismo nem feminicídio, que isso é tudo invenção de comunista.
Se perguntarmos a um palhaço, dirá que hoje é dia de fazer piada, dessas que nos fazem rir do absurdo do mundo. Se perguntarmos a uma cartomante, verá nas cartas que hoje é dia de ótimo astral, de sorte no amor e prejuízo no jogo do bicho, mas que não é feriado, como atesta o calendário apregoado na parede de seu consultório. Se a indagada for minha vizinha, não a Valha-me Deus, mas a mesma que me parou agorinha para perguntar se hoje é feriado, pois hoje no mesmo horário que costumo usar para sair ao trabalho, todo vestido, me apresentei de bermuda e chinelo, dirá que hoje é dia de perguntar aos passantes se hoje é feriado.
Essa minha vizinha faz bem em perguntar, pois não é todo mundo que sabe que hoje é... Meu amigo carregador de tomates mesmo, não sabe que hoje é... Ele, que acordou hoje às três da manhã para descarregar um caminhão de tomates, se for perguntado, dirá que hoje é dia de descarregar caminhão de tomates e ganhar a vida, e não perdê-la nas linhas de produção das fabricas de fake news. Para ele e a maioria dos brasileiros hoje é hoje, não é amanhã, menos ainda ontem, concorda? Hoje é? Essa é uma pergunta complexa para mim e simples para a maioria do povo de Deus, como podem alegar os eclesiásticos, conclamando o ethos papal e dizendo-lhe que hoje é dia, como os de ontem e de amanhã, dia de rezar Pai Nosso e dizimar, como aponta Tadeu, 12:13.
Hoje é substantivo, dirá o gramático; é amanhã, segundo o filósofo; é nunca, conforme o ateu. Discordo de todos eles, e me achego à definição de uma criança a qual um dia um taxista perguntou o que ela iria fazer na cidade, e essa criança, curtida no mato, fazedoras de boiadas, admiradoras de pássaros, disse-lhe: "Eu vou gozar!" A criança veio à cidade, cresceu, fabricou-se e vendeu-se nas esquinas do cimento armado. Hoje eu a encontrei próxima aqui de casa, levando um balde de cimento à cabeça, toda curvada, que me fez lembrar Sísifo e seu rochedo, essa criança adulta se aproximou de mim e disse: "Hoje, como deve ser todo o sempre, é dia de resistência. Zumbi vive." Zumbi vive, que nunca nos esqueçamos disso.