MEMÓRIAS DE UM BOI

Os monges é que vivem enclausurados em meditação.

Não vou me esforçar em transpor as muralhas.

Não vou me chicotear para redimir as dores do mundo.

Naquele suntuoso palácio não há clausura.

Do Planalto ao sertão há um fosso intransponível.

Da Esplanada à favela a distância não é medida em metros.

A disparidade é flagrante e abominável.

Na vala comum não cabem todos os ossos - a relíquia é apenas para o milagre dos que se tornarão reféns dos santos.

Todos os homens são desiguais perante "o grande regulamento".

A rampa do Planalto se tornou muito íngreme e inacessível aos mortais. Luxo é não deixar a vida fluir; luxúria é viver como um contraponto da vida cósmica.

Há bois tão ricos, há magros.

Há faustosas pastagens: há terra ressequida.

A boiada se esgueira pelas porteiras para serem sacrificadas no grande curral.

O boi gordo é para a China, para a Rússia, para a Europa.

Para ti, miserável, são apenas as vísceras.

Fica com elas e rói teus dedos. Lambe a gamela.

Vai empanturrar na invernada e ostentar teu luxo no primeiro açougue.

Joel de Sá
Enviado por Joel de Sá em 20/11/2019
Reeditado em 20/11/2019
Código do texto: T6799254
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