Mendigo, Poeta ou... ?

50 Contos, ou Mesmo Crônicas, de Terra Boa, Paraná.

Capítulo 09

Mendigo, Poeta ou... ?

Os assim chamados pobres. Aqueles que conhecemos como os desvalidos, os descamisados (Evita Perón assim os chamava), pés descalços (Collor) – aqueles para quem nunca haverá uma plenitude humana. Estes que andam pelas ruas pedindo esmolas. À época, nunca uma pessoa passaria pela nossa casa e saía com fome, sem comer pelo menos um prato de comida. Era algo subentendido por todos nós, os filhos, pela própria família. Aceitávamos, gostávamos e praticávamos.

Pois bem, domingo luminoso, árvores balançando sob uma brisa suave e amiga. Lembro bem: o time de São Tomé (um portento) veio jogar com o de Terra Boa (um fenômeno). Jogaço. Meu pai pediu para o seu amigo doutor Hélio que preparasse um almoço bem substantivo para recepcionar a diretoria do time visitante. O causídico era um advogado rechonchudo. No sol nortista, andava com um lenço, permanentemente enxugando o suor que lhe brotava pelo rosto, mercê do calor. Outra característica notável para a época: deslocava-se de um lado para outro com sua lambreta, o que devo reconhecer lhe dava um certo destaque, notoriedade. O advogado da lambreta.

No dia aprazado, vejam só o banquete: em cima da farta mesa, destacavam-se os frangos assados douradinhos, o macarrão brilhoso, entornando molho vermelho e suculento ao seu redor. Da minha posição relativamente baixa, pelo tamanho, eu podia ver, vislumbrar, as brilhantes garrafas do insuperável (para mim) guaraná Gold Scrin. Conversava-se, ria-se, socializava-se.

Um homem molambento chegou ao portão e bateu palmas (os mendigos eram chamados de molambos, molambentos, e batia-se palma em frente as casas para chamar os donos). Foi uma espécie de contraponto, anticlímax, uma reversão de expectativa. Por uma ideologia estranha e anti alguma coisa que eu não sei definir bem, as pessoas julgam que mendigos devem viver em um gueto geográfico e social, aonde se vai para lhes acessar, mas não o contrário. Mantenhamo-los longe dos nossos convescotes sociais – acho que alguns pensam assim.

Ele, o mendigo em si, enfrentou os já tradicionais olhares atravessados, opiniões murmuradas de forma que não ouça, mas que perceba que opiniões desairosas estão sendo emitidas sobre sua bem-vinda pessoa. Um prato que lhes é dado com a observação elegantíssima: “Não precisa devolver” e os rituais similares que marcam a hospitalidade e acolhimento tão peculiares ao gênero humano.

Ele ficou lá no portão. Garfo vai, garfo vem. Um copo de água. Vai bem um copo de água, pois não? Não precisa dizer que tem guaraná e também não faz diferença para quem está com fome de verdade. Kkkk. Ele tinha o cabelo comprido e infalivelmente desgrenhado, roupas em trapos, olhar vago, indistinto, distante. Não, ele não cheirava bem, estou sendo sincero. Ninguém se aproximou muito. Entregaram o prato, a menina a que trabalhava na casa do doutor Hélio entregou. Ele comeu. Tomou a água num longo gole satisfeito e... partiu. Não sem deixar um bilhete, uma cosa escrita que imediatamente foi entregue a meu pai.

Estava escrito em um papel impecável um poema, um poema de Francisco Otaviano. Ei-lo:

MORRER... DORMIR...

Morrer... dormir... não mais! Termina a vida,

E com ela terminam nossas dores;

Um punhado de terra, algumas flores,

E, às vezes, uma lágrima fingida!

Sim! minha morte não será sentida;

Não deixo amigos, e nem tive amores!

Ou, se os tive, mostraram-se traidores,

- Algozes vis de uma alma consumida.

Tudo é podre no mundo! Que me importa

Que ele amanhã se esb’roe e que desabe,

Se a natureza para mim é morta!

É tempo já que o meu exílio acabe...

Vem, pois, ó Morte, ao nada me transporta...

Morrer... dormir... talvez sonhar... quem sabe?

Sem assinatura. O reboliço foi total. O próprio delegado, doutor Nair, saiu com o Jeep atrás dele imediatamente. “Precisamos conversar com este homem”. Foi daqui, foi dali, nada. O alvoroço foi total. Um homem que já foi rico e que foi traído pelos amigos? Um doutor, um médico, um advogado, desiludido da vida, da existência? Um milionário disfarçado? Um intelectual testando a bondade humana? Mil e uma opiniões, mil e uma conjeturas. Aumentou o mistério. O delgado não achou o mínimo rastro da pessoa em sai, apesar do pouco tempo entre sua partida e a competente diligência policial. Rápido interrogatório. Ninguém nunca o tinha visto, numa cidade de pouquinhos mil habitantes. Todo mundo conhecia todo mundo – ninguém conhecia o tal indivíduo em questão. Quem seria? Nunca mais. Nunca mais o mistério foi resolvido.

A dona Antonieta arriscou: “Acho que era um anjo”. A questão está sub judice até hoje. Aceitam-se opiniões.