Mundo delivery
Tenho a impressão de que a gente, principalmente a da cidade, muda de hábitos muito ligeiramente. Aliás, talvez não seja uma impressão, mas um fato. Não faz muito tempo, era comum vermos pessoas andando em marcha lenta pelas ruas das cidades, leiteiro à porta de casa, café feito na chaleira. Hoje tudo mudou: as cidade tornaram-se ''inteligentes'', as pessoas apressadas, o leiteiro ficou desempregado e o café agora não é mais feito em chaleiras, como nos tempos bárbaros. Ficou moderno e expresso, tal qual quase tudo que nos rodeia. Fico impressionado como, em meio à modernidade de hoje, ante a sociedade massificada, ao inchaço populacional das grandes e pequenas cidades, ainda me alarmo com essas máquinas de café expresso.
Sempre fui muito apegado à técnica ancestral por trás da feitura do café. Desde pivete gosto de observar a água ferver na chaleira, borbulhar e o pó negro mergulhar em confissão, para mais tarde exalar o aroma do amor. De minha parte, vejo nesse processo um querer social e familiar, aberto ao mundo e a vagareza do ontem: um espaço de permanente diálogo com a vida que nos cerca. Daí concluo que esse café feito em cafeteira expressa, para mim, é postiço e de mau gosto. Desaprovo sua rapidez e sabor, mas como evitá-lo diante da pressa do mundo? Diante do "mundo delivery"?
Hoje não é apenas o café que é expresso. Hoje quase tudo na vida hodierna, para usar um vocábulo nada moderno, é expresso. Hoje o leite também é expresso; não é produzido por animais irracionais nem entregue por leiteiros; é confeccionado nas fábricas e entregue aos empresários do ramo alimentício, os quais o distribuem aos expressos cidadãos das metrópoles. Hoje os prédios abandonaram escadas e casaram-se com elevadores; os ônibus desembarcaram seus passageiros para que esses peguem um "Uber" e não cheguem atrasados aos compromissos expressos do mundo delivery. Hoje o amor, além de palavra velha e em desuso, também é expresso; moderno é "crush", ou o que lhe equivalha. Moderno é chamar menino de "boy"; ser "tumblr", que é mais que bonito. O importante é ''lacrar'', ''mitar'', fazer dos problemas ''probleminhas", pegar um Uber em direção ao fim do mundo e não ''pistolar", que é para não "tiltar".
Por esse princípio, cidadão — digo, cliente — que chega a uma barraca, ou melhor, quiosque, pede um copo de café e, em menos de um minuto, tem sua caneca de café expresso não deve ser censurado. Pelo contrário, é uma ação de expressa conformidade com o mundo delivery de hoje. Se antes, em um ''antes'' não tão antes, o cliente teria de aguardar a liturgia do café curtido à chaleira, o que na maioria dos casos cumpria um rito social e afetivo, hoje abandona essa prática — e o Mercado agradece. Hoje a prática é outra: a demora transformou-se em pressa — e a pressa do mundo delivery tem contribuído para o aumento do PIB, como provam os estudos dos economistas da Escola de Chicago.
Esse cliente moderno tem entendido o aviso do mundo delivery e vivido sua vida expressa e moderna. Há pouco tempo, dormia à noite, em rede, no pardo e sonhava com os verdes campos do seu lar; hoje o sono é durante o dia, a rede é beliche, a luz de "led" e os verdes campos do seu lar cederam espaço às pesadas prestações dos boletos expressos. Há pouco era respeitado pelo bigode que conservava à face, hoje é pelo terno que veste; há pouco vinte e quatro horas diárias eram mais que suficientes para ele cuidar da lavoura, banhar-se, cortar as unhas, ver o pôr do sol... Hoje não são suficientes nem para ele olhar os e-mails, dirigir até o trabalho, dar "Bom dia" ao vizinho, posto que more ao lado, em outro mundo delivery. Qualquer dia destes pode acontecer de esse cliente "pistolar", e a causa pode ser uma dessas placas expressas nos letreiros de um mundo delivery. Como aquela apregoada à parede de uma cafeteria, com os seguintes dizeres: "Espresso. Served here.", que, para a linguagem deliry do mundo delivery, traduz-se como "game over".