Como Bons Amigos

Foi há cerca de 20 anos, foi também meu primeiro amigo que conheci quando garoto, de um jeito inusitado, poucas ideias, de um jeito nada, nada, nada, amistoso, nem fomos apresentados como de costume: "Quebramos o pau na porrada sem mais nem menos". Aconteceu em meio a uma rápida partida de bola na quadra do colégio entre colegas do bairro. Nada mal, selava-se ali o início de uma amizade improvável entre um corinthiano e um Palmeirense sequelado. Ambos, tínhamos não mais que 14 pra 15 anos. Com isso, ficamos rivais e uns bons anos sem trocar afinidade um com o outro, depois, fizemos as pazes, sessamos a inimizidade entre nós, pedra por cima, ficamos amigos. Depois (ou durante), somou-se a nós um terceiro amigo, o pipeiro. Alegria pura. Sorriso fácil. Maroto pra vida como só ele. Formava-se ali a nossa tríade inseperável, mas o perdemos ainda garoto, quando ele foi assassinado a tiros de uma hora pra outra, sem sabermos por qual razão. Nós apenas contávamos os dias para comprar figurinhas na banca do godói, gastando as tardes soltando pipa e, mais tarde ainda, tarrávamos cera com velas de cemitério nas noites aprazíveis de são joão, percorríamos grandes distâncias pelas ruas da zona norte de São Paulo como garotos inconsequentes, procurando entre o céu estrelado uma outra aventura, confundindo-as muitas vezes com aviões, onde um mundo encanto se escondia, não procurávamos estrelas, mas entre o céu e as estrelas a magia intocável dos balões.

Dali em diante, minha mãe se mudaria para Europa e eu me vi tendo que assumir novos rumos além da Brasilândia, ZN de SP, onde fui parar no Jardim Elisa Maria, periferia isolada da capital paulista aos pés da serra da cantareira. Lugar onde fiz poucos amigos, mas de todas as idades, do pirralho de dez anos à senhora mais idosa da comunidade. Dna. Constância. Era ela quem cuidava de distribuir o leite da assossiação para as mães e crianças da comunidade. Eu a visitava todos os dias, e passava as tarde conversando enquanto ela costurava um trapo de pano velho entre um cigarro e outro quase sem trégua. As pessoas gostavam da minha visita e a minha casa acabou virando local para a visita de quase todos. Foi lá que conheci, em especial, a primeira garota que me tocaria sensivelmente. A nossa relação durou não mais do que um romance obstante entre dois adolescentes imaturos e um amor passageiro de verão.

Por fim, isolado e vivenho sozinho, não me adaptei. De repente muita coisa deixou de estando ali, sentia-me distante de todos, sozinho, sem planos e afinal, eu já estava com 18 anos. Era hora de tentar ser alguém. E eu fui tentar a vida com as condicões que eu tinha naquele instante. Nada mais. Tive outras mil razões para mudar dali, foi então que juntei o cansaço de tudo à minha volta com o desejo enorme de desaparecer como fosse, sem ao menos pensar o que faria nem para onde iria. Segui o vento para outros ares do mundo, deixando SP pela última vez, talvez, em meados de 2004, creio eu. Segui dali em diante pelo rastro do acaso sob o olhar amendrondato de incertezas, tentando me reecontrar sem saber por onde. Não me encontrei. Pelo contrário, abri minha própria porta contra o muro, e por noites a fio tive apenas a calçada como único colchão, passei a dormir na rua e vagar em Florianópolis como um sujeito sujo, vivendo às escuras da própria sombra errante que me tornara de uma hora pra outra, sem perspectiva, uma sombra notívaga e uma estatística mais perto do fim e cada vez mais distante de uma solução concreta. Ninguém soube disso, nem mesmo meus parentes. Isolei-me como quis na tentativa de encontrar meu próprio meio. Nunca contei. Nunca quis ligar pra pedir ajuda. Paguei o preço e assisti meu próprio inferno astral cobrir as noites sobre mim, e que uma noite de inverno em claro é a pior tortura que uma criatura humana pode suportar, porque uma noite de inverno é uma noite sem fim, com todos os elementos e sequelas infernais falando dentro de si e isso parece prolongar o tempo ainda mais: a fome, o frio intenso, a claridade que nunca vem, o medo, a insignificância de si mesmo perante a todo o resto bem diante do nada. E o que mais te congela por dentro é o frio que não quer dar trégua, com aquela sensação inerte de ser apenas mais uma sombra esquecida pela cidade como que à espera de um abrigo, ou um sinal qualquer de alguém que lhe empreste um mísero olhar ou que lhe estenda a mão. Basto-me aqui.

Voltando à história desse grande amigo, o fato é que nunca mais soube notícia do tal sujeito, nem onde vive ou sinal do tipo. Tenho-o apenas em um canto do peito, e como tudo na vida que realmente importa, tem

saudade que vira memória, como a de um amigo que a gente não vê a horas.

Poesia Tofilliana
Enviado por Poesia Tofilliana em 16/11/2019
Reeditado em 16/11/2019
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