Ainda falta muito

Com o fim de um projeto que, além de levar 2 anos para ser concluído, mexeu com os meus neurônios de forma muito peculiar, hoje me dou o direito de chegar em casa mais cedo, tirar os sapatos de salto alto e jogar-me no sofá feito criança.

A tarde está caindo e, pela varanda consigo olhar para o céu e ouvir a vó Nenê falando sobre a hora da saudade, interpretada por mim, na época, como a hora da solidão. Tantos anos se passaram e essa hora ainda está presente sempre que consigo contemplá-la.

Minha infância e juventude foram regadas por pessoas maravilhosas que faziam eu me sentir literalmente uma flor. Viví no interior, em uma família grande, pais dedicados e uma avó amorosa que, com uma liderança nata, era o centro de tudo. Sua casa era grande, bonita e muito organizada. Lá as portas estavam sempre abertas para reunir a família e os amigos. A vó Nenê era uma das suas melhores amigas e, diariamente, lá buscava o seu canto para aninhar-se para uma prosa intercalada pela última rodada de chimarrão.

Certamente esse ambiente de amor reforçou a minha sensibilidade no decorrer dos anos. Embora eu viva em um ambiente extremamente hostil na empresa na qual trabalho, fazendo com que eu crie a cada dia uma couraça para conviver com infindáveis animosidades, quando estou sozinha ou fora desse ambiente o coração acelera com pequenos atos e me fazem terna e mais humana. Uma contradição, porque com mãos firmes eu conduzo uma área enorme da empresa e enfrento praticamente todos os desafios, como se eles já tivessem passado pela minha vida inúmeras vezes. Estou com 56 anos e não raramente sou requisitada pela diretoria da empresa para opiniões estratégicas. Por outro lado, sou alguém que flana e sai do ar com a maior facilidade, que ainda sonha com o amor da sua vida e pretende fazer algo significativo em termos sociais.

Estou há 37 anos distante da minha cidade natal. Já passei por 3 capitais a trabalho e conhecí muita gente. Neste exato momento tenho a sensação de que só trabalhei. Tive os meus relacionamentos, alguns muito bons, mas nenhum deles deixou que o trabalho fosse colocado em escala menor. Muito já me questionei como pode haver tantas executivas mães-mulheres. Eu não conseguí. Não conseguí sequer viajar para alguns países que eu sempre sonhei conhecer. O motivo foi, na maioria das vezes, um ou outro projeto que me faziam “imprescindível”.

Depois de tanto tempo e com muita reflexão hoje sei que ninguém é imprescindível, que eu nunca fui tão boa quanto me fizeram. Eu sempre fui boa demais em comprometimento. Herdei de meu pai essa face escancarada de honestidade, seriedade e envolvimento. Desde muito cedo fui orientada para não errar, para dar certo na vida. Com 12 anos eu já datilografava muito bem, com 15 eu já escrevia com desenvoltura e “pensava” que sabia o que queria e aos 18 passei no segundo vestibular.

Apesar do alto custo de tudo isso, que somente hoje eu enxergo, fui feliz, muito feliz. Fui criada em boa base, sem grana mas sem faltar o básico e, com o passar dos anos, fui desbravando o que via pela frente com certa tranquilidade. Como filha mais velha inconscientemente busquei tomar conta da família quando perdí o meu pai aos 19 anos. Tinha mãe e 2 irmãs para orientar, como se eu fosse uma professora em todos os assuntos da vida. Mesmo longe, eu nunca me desliguei das minhas obrigações, obrigações estas impostas por mim e mais ninguém.

Dos 19 aos 28 anos eu viví literalmente num inferno interior. A falta do meu paí, o meu ídolo, e a segurança que ele me passava fizeram com que eu me recolhesse do mundo. Foi um período obscuro que, na época, eu justificava como resultado de uma decepção amorosa. Hoje eu sei que não foi.

Aos 16 anos, em um carnaval, fui seduzida por um lindo rapaz. Alí nasceu o meu primeiro namoro. Namoramos por 2 anos e, sem que algum sinal fosse dado, ele se afastou sem ao menos se despedir. Em 6 meses estava casado com uma menina que fora minha colega de escola. Lembro-me do dia: 30 de dezembro, data que ficou marcada em mim como uma tatuagem. Da minha casa ouví os sinos da igreja anunciando a entrada da noiva. Sim, naquela época, no interior, esse fato acontecia sempre. Mas o tempo passou, vieram outros carnavais e eu já não estava mais na minha cidade, rodeada pelas mesmas pessoas, circulando pelas mesmas vielas. A necessidade fez com que eu ganhasse o mundo e fosse desbravá-lo da melhor forma.

Tive outros relacionamentos, amei, odiei, casei, descasei, abandonei e fui abandonada. Tudo numa profusão tão eficaz que hoje, com a minha idade, eu posso dizer que viví.

Aquí, ainda estirada no sofá, já com a noite a me fazer companhia, eu questiono o que é “se dar bem na vida”. Continuo sem a resposta e sem qualquer certeza. O tempo passou e, ao contrário do que sempre pensei, menos certeza eu tenho de tudo.

E a vida segue ...

09/11/2019

Rosalva
Enviado por Rosalva em 14/11/2019
Código do texto: T6795058
Classificação de conteúdo: seguro